São Paulo, quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

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Inquietude a óleo

Miguel Rio Branco
"Homenagem a Goeldi", painel do artista Miguel Rio Branco de 2001-2002, que traz seis paisagens de Cuba



Em busca de nova direção na fotografia, Miguel Rio Branco faz caminho de volta à pintura; artista também prepara livro e exposição na Espanha


LUCRECIA ZAPPI
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"A fotografia se banalizou. Vou pintar". O desabafo de Miguel Rio Branco é um paradoxo sem escolhas. O fotógrafo, que sempre alimentou sua inquietude existencial com tinta a óleo ou, pelo menos, tem como ponto de interseção entre as duas artes uma densa gravidade cromática, toma um café em seu ateliê no bairro de Santa Tereza no Rio de Janeiro e fala à Folha que quer pensar um pouco só em pintura, "até para renovar a fotografia".
Enquanto Rio Branco faz um retorno à pintura, planeja o livro "Negativo Sujo" com mais de 150 fotos em preto e branco, feitas durante viagens pelo Brasil nos anos 70. "Vai ser publicado nesse ano na França, pela editora Alexis Fabris, vamos ver se a Cosac & Naify entra com uma publicação brasileira. Seria essencial", diz.
Rio Branco inaugura no dia 21 uma exposição em Madri, na galeria Oliva Arauna, e, em junho participa de uma coletiva em Tóquio, organizada pela Brasil Connects. Para o segundo semestre prepara uma grande exposição individual na galeria André Millan, em São Paulo.
 

Folha - Como é a apropriação da fotografia pelos artistas hoje em dia?
Miguel Rio Branco -
Criou-se uma nova classe o mercado de arte, que são os artistas que usam a fotografia, e dizem: "Eu não sou fotógrafo, eu só uso a fotografia". Eu acho que isso é uma postura classista, barra pesada, porque na história da fotografia você vê que tem pessoas profundamente "artistas", além de saberem fazer laboratório e tudo o mais, do nível do Man Ray ou Cartier-Bresson, que são fotógrafos, mas também artistas.

Folha - Na sua opinião, por que o número de artistas trabalha com a fotografia cresceu tanto?
Rio Branco -
Hoje em dia as máquinas são automáticas, os laboratórios fazem tudo e o pessoal na verdade não sabe fazer mais nada, nem pintar ou desenhar. Aí eles têm pequenos saques de idéias que, a meu ver, tem levado a fotografia para uma área completamente reacionária, ilustrativa. Há uma classificação que não é correta.

Folha - Vivemos uma fase de novos conceitos?
Rio Branco -
Dentre os fotógrafos mais tradicionais há os que têm mais conceito e outros que têm menos, mas, hoje em dia, muitos dos que dizem ter conceito, os têm absolutamente baratos, primários. É o tipo de fotografia exposta nas bienais hoje em dia: um trabalho muito mais documental, antropológico do que artístico. E isso eu acho um atraso, um retrocesso criativo.

Folha - E no Brasil?
Rio Branco -
Eu acho que isso acontece no mundo todo. O Brasil foi mais documental há um tempo atrás, mas hoje em dia está tudo parecido. O que falta é uma questão de originalidade própria, da pessoa ter mais uma questão existencial no processo criativo.

Folha - Há uma crise na arte?
Rio Branco -
Acho que é uma fase passageira de crise de criação no mundo, que se resume a uma questão temática.

Folha - Por que temático?
Rio Branco -
Porque todas as bienais e grandes exposições estão relacionadas a um tema. É muito mais fácil para o curador falar para a mídia em temas porque as pessoas, aparentemente, entendem com maior facilidade.

Folha - Você acha que existe aí um didatismo reacionário?
Rio Branco -
Acho que sim. É uma estética que poderia sair de um jornal ou de um estudo antropológico visual. É a volta ao representativo, no caso da fotografia.

Folha - E como você se defende? Vai voltar a pintar?
Rio Branco -
Eu nunca parei de pintar, inclusive minha fotografia tem um lado pictórico desde o começo. Não estou dizendo que vou parar de fazer fotografia, muito pelo contrário. É uma vontade de sair de toda uma dependência tecnológica. É necessário um retorno à pintura inclusive para retomar uma outra direção na fotografia. Senão você fica se repetindo e a única coisa que eu repito é a temática interna existencial.

Folha - Há uma dimensão simbólica na sua obra?
Rio Branco -
Na série dos boxeadores, por exemplo, o corpo passou a se desmanchar, em movimentos fantasmagóricos. A temática do meu trabalho é a das marcas do tempo, com corpos marcados, lugares marcados. O tempo de exposição que deixa a própria marca dentro da imagem, é a própria questão da luz. E a fotografia tem essa ligação com a questão do tempo, de várias maneiras.

Folha - Como você constrói a luminosidade das imagens?
Rio Branco -
Existe uma questão inconsciente que se manifesta no meu trabalho. O conceito é muitas vezes construído não a priori. Eu não vou dizendo "Eu vou fazer exatamente isso". Tem coisas que eu já sei mais ou menos o que eu quero, mas a surpresa do achar é muito importante para mim.
Quais são suas influências e fotógrafos que têm pontos em comum com a sua obra?
O único fotógrafo que pode ter talvez me influenciado diretamente foi o Bill Brandt, com um céu puro, chumbado, aquela coisa bem dramática. Mas eu era um auto-didata mesmo. Robert Rauschenberg e Paul Klee são pintores que eu gosto muito. Quando comecei a pintar, na Suíça, eu gostava de coisas horrorosas como o Bernard Buffet (risos). Mas aí eu tinha uns 15, 16 anos.

Folha - Existe uma fascinação sua pelo submundo, pela marginalização, que é um tema que aparece frequentemente no seu trabalho?
Rio Branco -
Sempre houve essa fascinação e talvez essa identificação. Eu sendo filho de diplomata e vivendo em vários lugares do mundo sempre me senti fora de qualquer lugar. Então você se coloca numa posição meio marginal. As raízes são desconstruídas e, ao mesmo tempo, há várias novas conexões. E no Brasil, quando eu comecei a fotografar, uma das questões que tinha nos anos 70 era a miséria total e a marginalidade de uma população.

Folha - Como você vê a produção dos jovens artistas hoje em dia?
Rio Branco -
Eu vejo uma vontade enorme de entrar no mercado, que cresceu muito, dinamizou muito. O trabalho tem que ser bem resolvido esteticamente, ter um pequeno saque. Mas a arte vai fundo na pessoas, não é decoração. É chato dizer isso, mas eu estou parando de acompanhar porque você sai meio vazio das exposições. Prefiro ir à Praça Quinze ou ao brechó.


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