São Paulo, sexta-feira, 14 de janeiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Turismo ecológico

Deus é testemunha do meu respeito pela causa ecológica. Um dia dos anos mais antigos, passeando na Lagoa, encontrei um grupo de meninos que jogavam pedras para o ar por nada mesmo, só para testar a lei da gravidade. Uma das pedras quase me pegou, e eu aproveitei a oportunidade para, serenamente (ou melhor, na base de filhos daquilo), doutriná-los a respeito da preservação do ambiente.
Poderia ter falado também sobre a camada de ozônio tão severamente ameaçada. Mas, naquele momento -e com aquelas modestas pedradas-, acreditei que a tal camada de ozônio não corria risco iminente.
Leio que está na moda, no Primeiro Mundo (que compulsoriamente faz parte do mesmo ambiente do Terceiro Mundo), um tipo de "turismo ecológico". Não entendi o espírito da coisa. Li alguns prospectos que me convidavam (e até me incitavam) a conhecer esqueletos fossilizados de dinossauros e uma extravagante libélula, cuja espécie está em extinção, mas que sobrou para contar a história e apagar a luz do aeroporto do país das libélulas.
Confesso que, por maior que seja o meu amor à natureza e minha especial veneração pelas libélulas e dinossauros, não chego a tanto. Eu não sairia da Lagoa nem arredaria um centímetro do meu pequeno mundo para tal e tamanho deleite. Prefiro, honestamente, continuar praticando meu predatório turismo não-ecológico, visitando as mesmas catedrais, os mesmos museus e, o diabo ajudando, meus roteiros sentimentais, de sempre e de tudo.
Não é de hoje que os fanáticos pela ecologia nutrem sinistros propósitos a meu respeito. Tempos atrás, precisando fazer pequena ampliação no apartamento de um caseiro, em Cabo Frio, tentei deslocar um limoeiro que nunca me honrara com o amargo sabor de um único limão. Ignoro como as coisas aconteceram: na hora em que ia começar a deslocar o tronco, surgiu lá na rua uma comissão brandindo cartazes e vociferações contra meu criminoso intento e promovendo o mirrado limoeiro a uma transcendência metafísica que nem a Árvore do Bem e do Mal teria merecido.
Diante da evidência de um atentado ecológico à minha pessoa -eis que também sou um animal em fase de extinção-, resolvi recolher meus abomináveis intentos, pedi desculpas genericamente e genericamente fui deixado em paz, juntamente com o limoeiro, que resistiu até a noite. Protegido pela treva, tirei-o com cuidado, aproveitando a terra em torno de suas raízes e replantei-o mais adiante, de forma a abrir espaço para a pequena ampliação do conforto de um caseiro -ele também integrante do ambiente e fazendo parte de uma espécie em extinção em fase das mais adiantadas: há dois anos procuro outro e não encontro. Depois de mudar de ares, o limoeiro mudou de comportamento, deu graças de cumprir sua nobre função de limoeiro e já produziu alguns -embora azedos como nenhum outro limão teve a audácia de ser.
Vai daí, ainda em transe ecológico, volto ao roteiro turístico que as agências dos países ricos me recomendam. Além dos dinossauros fossilizados, há um convite explícito para ver "com os meus próprios olhos" o emocionante instante em que um tigre se acasala com uma hipopótama. Admito que cultivo alguns vícios, mas me recuso na faixa etária em que me encontro, a iniciar uma tardia carreira de "voyeur".
Lá na remota mocidade, certa vez espiei pelo buraco de uma providencial fechadura alguma coisa parecida: uma prima foi passar a noite de núpcias na casa de campo onde eu ocupava, com outro primo, o quarto ao lado. Foi uma noite emocionante. Não teria, com as núpcias do tigre com a hipopótama, a mesma emoção.
A lembrança desse reprovável evento de minha biografia não me consola nem eleva. Naquele tempo, foi apenas um ato de pura e bela sacanagem. Hoje eu poderia invocar poderosos argumentos para justificar minha cúpida perfídia. Poderia alegar, agora, que não fui movido por baixos e reprováveis instintos: eu zelava pelo ambiente, verificando se minha prima e seu marido cumpriam eficientemente o mesmo acasalamento que a ecológica agência de turismo me oferece em seis suaves prestações mensais.
Não desejo que me levem a mal: estou disposto a tudo fazer pelo bem-estar do planeta não apenas porque moro nele mas também porque me considero incompetente para desgraçá-lo de forma comprometedora.
A história do limoeiro de Cabo Frio não chegou a desfigurar a Terra nem a prejudicar a salubridade do ar que respiramos. O episódio da prima, se do ponto de vista moral não figura entre minhas belas ações, tampouco prejudicou o equilíbrio do pólo Norte e a segurança do eixo gravitacional da Terra -ainda que a prima, na cama, ajudada pelo recém-marido, tenha se esforçado para isso.
Vai daí, é com o coração contrito e a alma em festa que me preparo cívica e moralmente para o ano que vem, quando teremos a ecologia como prato de sustância nos roteiros de lazer.
Torço para que tudo dê certo, para que a camada de ozônio, os hipopótamos, as libélulas e dinossauros idos e vividos tenham o seu momento de glória -a mesma que não disputo mais, deixando-a de bom grado para heróis de ecologia que, como lá diz o Evangelho, herdarão a Terra.


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