São Paulo, sábado, 14 de janeiro de 2006

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Nova tradução da obra de Cervantes remete texto ao português arcaico

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Devidamente acreditadas as mentiras da ficção, Miguel de Cervantes não chegou a ser nem o primeiro tradutor de "Dom Quixote". Antes dele, um mouro inominado foi quem deu formulações castelhanas para as palavras do árabe Cide Hamete Benengeli, este sim o verdadeiro autor da imaginária história de cavalaria (convém ignorar que "benengeli", em árabe, significa "filho de cervo", ou seja, Cervantes).
Impossível determinar qual dos três deu forma ao profético personagem de Sansão Carrasco, que, referindo-se à história do fidalgo, afirmou que "não há de haver nação em que não se leia, nem língua em que não se traduza". Mas fato é que, ao menos no Brasil, Carrasco acertou novamente, e chega às livrarias mais uma tradução de "O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha" (Record, R$ 67,90, 574 págs.), feita em parceria pelo brasileiro Carlos Nougué e o espanhol José Luis Sánchez.
Desta vez, um trabalho sem dúvida peculiar já no objetivo previamente estabelecido pelos tradutores, o de responder a uma "equação de três incógnitas: tentar construir a maneira como Cervantes teria escrito no português de então, sem perder o sabor hispânico, mas de modo compreensível para o leitor atual", nas palavras de Nougué.
Assim, foram em busca de um português arcaico que ainda sobrevivesse na compreensão dos leitores, para isso sendo necessária uma ampla pesquisa lingüística que determinasse a época de nascimento de cada palavra. O resultado é um texto que se aproxima dos arcaísmos e do sabor temporal da primeira tradução ao português, feita pelos Viscondes de Castilho e Azevedo em 1876, mas que resulta muito mais legível e compreensível do que esta.
"Quando alguém escreve, e sobretudo alguém do porte e da altura de Cervantes, está profundamente enraizado em sua época. Isso não significa só que descreve o contexto social, político, religioso ou cultural daquela sociedade. Significa também que descreve como isso se expressa na linguagem, e é por isso que o tradutor precisa remetê-la à mesma época", afirma Nougué, justificando o procedimento que adotaram.
Nesse sentido, diferencia-se da tradução que preponderou no Brasil na segunda metade do século passado, feita por Almir de Andrade e Milton Amado, mas não tanto da última a ser lançada antes desta, a de Sérgio Molina, em 2002. Nenhum trabalho foi em vão: Sánchez e Nougué se valeram de todas essas traduções para criar a deles, em alguns casos "simplesmente tomando algumas das boas soluções encontradas".
Tudo para enfrentar as dificuldades apresentadas pelo texto, do sem-número de provérbios recitados pela voz popular e sã de Sancho Pança às constantes e surpreendentes metrificações da linguagem de Cervantes, poética mesmo na prosa. Afora isso, o dilema de corrigir ou manter os erros gramaticais e anacolutos cometidos pelo próprio autor, sem falar nos erros de continuidade.
Por enquanto, foi só o primeiro livro da série, o segundo sendo prometido ainda para este ano. Render-se ao clichê e dizer que se trata de trabalho "quixotesco" pode produzir efeito impreciso. Mas conhecerá a grandeza de tal definição quem se deparar, palavra trás palavra, com a beleza e a loucura do inesquecível personagem.


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