|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Entre POA e NY: mal-entendidos e um grito de guerra
Em 2001 , participei do Fórum
Social Mundial, em Porto
Alegre. Neste ano, acompanhei
Porto Alegre pela imprensa e estive em Nova York durante o Fórum Econômico Mundial. Fiquei
sobretudo nas ruas, onde se expressava o dissenso.
Nos auditórios, reinavam as
boas intenções: uma distribuição
mais igualitária das riquezas
mundiais melhorará a vida de todos. Como não concordar com isso?
Mas os repetidos mea-culpa dos
painelistas do Fórum de Nova
York me deixaram perplexo: talvez essas generosas propostas fossem uma estratégia para manipular o clamor da rua. Por que
vocês gritariam tanto, se nós,
aqui, nos salões do hotel Waldorf
Astoria, temos preocupações parecidas com as suas?
Imaginemos que o povo chegue
às portas do palácio pedindo participação política e que a rainha
jogue pela janela moedas, pães ou
mesmo brioches. Talvez a rainha
seja generosa. Mas o fato é que,
com essa generosidade, ela pode
produzir um mal-entendido útil
(para ela): quem sabe o povo
acredite que seu desiderato está
inesperadamente chovendo do
céu e esqueça, assim, seu pedido
de participação política.
Duvido que esse mal-entendido
pegue. Claro, a nova esquerda
tem uma veia igualitária que pode ser ninada pela promessa de
redistribuir riquezas. Mas o espírito de Seattle é sobretudo libertário. As multinacionais e os investidores globais não deixariam de
ser seus inimigos, mesmo que
conseguissem abolir toda a miséria do mundo. Pois a revolta nasce da constatação de que há entidades que decidem sobre nossas
vidas concretas, mas, por serem
supranacionais, escapam ao controle dos governos e, portanto, ao
nosso. E pouco importa que essas
entidades sejam generosas ou
não.
Posso eleger deputados, senadores e presidentes. Com isso, participo um pouco em decisões legislativas e políticas que pesam em
minha vida. Mas ninguém me
consulta para eleger o próximo
diretor de uma multinacional cujas escolhas também mudam
drasticamente meu cotidiano.
Em suma, a generosidade dos poderosos, por sincera que seja, não
responde às razões da revolta de
hoje. O tumulto não acabará em
brioche.
Em Porto Alegre, obviamente,
ninguém tentou amansar a nova
esquerda à força de brioches. Ao
contrário: sua radicalidade foi
valorizada como uma prova de
parentesco revolucionário entre o
espírito de Seattle e a esquerda
tradicional. Mas isso também é
um mal-entendido.
No semanal nova-iorquino "Village Voice" de 5 de fevereiro, E.
Kaplan entrevista uma jovem ativista da nova esquerda. Ela ficou
famosa por aparecer num vídeo
dos conflitos de rua em Seattle declarando, por baixo do lenço preto que protegia seu rosto: "Sempre
quis fazer parte de uma revolução". Seu pseudônimo é Warcry,
que significa grito de guerra. Na
entrevista, ela explica um pouco
de que revolução se trata. Ao falar
dos valores que lhe importam, declara: "O sonho americano está
morto. Mas há certos ideais americanos, liberdade de palavra, liberdade de reunião, liberdade de
discordar -essas são coisas em
que acredito e que gostaria de tornar reais".
Imaginemos que as palavras de
Warcry sejam representativas.
Surgem, então, dois problemas
para que seja possível uma aliança ou mesmo um simples encontro entre o espírito de Seattle e a
esquerda tradicional.
Primeiro: há o risco de um conflito ideológico. Warcry é, por assim dizer, uma extremista liberal.
As liberdades em que ela acredita
foram inventadas e promovidas
em sociedades liberais. Ainda não
foi provado que a plena liberdade
do indivíduo seja compatível com
uma organização econômica diferente da liberal. Dito com pedantismo: até agora, ninguém viu
Montesquieu passear sem Adam
Smith. Nenhuma contradição entre isso e a luta de Warcry contra
o neoliberalismo globalizado. Justamente Adam Smith, o pai do liberalismo, era pródigo de recomendações para evitar que o sistema produzisse monstros (megaempresas, cartéis, multinacionais etc.). Em suma, a sociedade
ideal da nova esquerda seria, provavelmente, um mundo de artesãos independentes e de pequenos
proprietários rurais, livres e alérgicos a qualquer forma de poder
central. É um sonho distante do
gosto da esquerda tradicional por
Estado e partido.
Segundo: há um problema de
convivência. A retórica coletiva
da esquerda institucional é infrequentável para o espírito de Seattle. Warcry, por exemplo, seria a
primeira a entusiasmar-se pelo
projeto de impor uma reforma
agrária de foice na mão. Mas é
provável que, confrontada com a
dita "mística" coletiva do MST,
ela jogaria no palanque as pedras
que guardava para os capatazes
dos latifundiários.
Faça a experiência: leia "Sem
Logo", o livro de Naomi Klein que
inspira a revolta da nova esquerda contra um mundo social e esteticamente desfigurado pelas
marcas, pelos logos. Essa leitura
terminada, imagine um jovem
ativista, leitor de Klein, no meio
de um comício de mil pessoas, todas de boné vermelho da CUT.
Como você acha que ele se sentiria?
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Panorâmica - Artes plásticas: Salão Paulista de Arte vai dar prêmio de R$ 36 mil Próximo Texto: Dança: Käfig recria hip hop em meio erudito Índice
|