São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 1998

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'THE NEW YORK REVIEW OF BOOKS'
Antologia faz a ponte entre alta e 'média cultura'

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

O "The New York Review of Books" nasceu de uma greve do "The New York Times" em 1963, como uma alternativa, criando um novo padrão de ensaísmo jornalístico.
É esse mesmo padrão que salta aos olhos na primeira antologia de 23 textos pinçados ao longo de 30 anos -por mais díspares e variados que possam ser seus autores (Isaiah Berlin, W.H. Auden, Susan Sontag, Gore Vidal, Primo Levi etc.) e assuntos (Picasso, Marlene Dietrich, Beethoven, El Salvador etc.).
Venerado não só por jornalistas, mas sobretudo por eles, que vêem ali uma raríssima possibilidade de vida inteligente dentro da própria profissão -e também uma forma de inteligência que não os rejeita, mas os acolhe, tornando a alta cultura acessível, explicando-a-, o "The New York Review of Books" funciona como uma ponte entre a alta cultura e a média.
Ou seja, ele é um dos melhores exemplos da maior altitude atingida pela cultura média nos seus vôos mais ousados, o que não é pouco.
Muita gente pode ficar irritada com a definição, mas, embora os textos ali publicados sejam em geral altamente sofisticados para o universo jornalístico (e tenham se tornado, por vezes, parte de livros dos autores), não são os mais geniais do mundo, longe disso.
'Anchova'
Não é à toa que o crítico de arte que melhor representa esse padrão (e que, por isso mesmo, foi incluído na primeira antologia do "NYRB") seja Robert Hughes.
Munido de frases de efeito (que podem ser repetidas nas conversas cotidianas) e de um estilo jornalístico direto, às vezes bombástico, o crítico de arte da revista "Time" pode definir Andy Warhol com algo do tipo: "Inspirado pelo exemplo de Truman Capote, ele foi atrás da publicidade com a pertinácia voraz de uma enchova faminta".
Pode ser cáustico, muito engraçado e até brilhante num determinado estilo, mas não virão dele as verdadeiras idéias, aquelas capazes de mudar o rumo da história da arte ou de abrir uma nova via antes impensada.
Os que fazem isso não são na maior parte das vezes os que assinam os textos do "NYRB", mas aqueles de quem falam esses textos.
Um exemplo é o ensaio de Jonathan Lieberson sobre Karl Popper, em que o autor explica com extrema clareza e paciência a obra do filósofo para leitores que dificilmente teriam paciência de se aventurar por conta própria em um tratado como "A Lógica da Descoberta Científica".
O texto de Lieberson dá o toque jornalístico, coloca o homem Popper em foco ao lado da obra, e desperta assim, por um caminho enviesado de reconhecimento (humano, biográfico etc.), o interesse de um leitor que nada poderia reconhecer na aridez da filosofia da ciência.
Anedotas
Esse padrão de um jornalismo cultural esclarecido proporciona uma leitura das mais agradáveis ao tornar narrativo o que na origem era apenas teórico.
No geral, portanto, o mais interessante desse gênero e desse formato não é quando o autor tem idéias, mas quando narra ou descreve acontecimentos (é lógico que há exceções, mas mesmo no clássico ensaio de Hannah Arendt sobre a violência as idéias são expostas como comentários diretos, reflexões, a partir de fatos históricos muito precisos e que podem ser reconhecidos das notícias de jornal).
Dentro desse gênero, um ensaio como o de Pierre Boulez sobre Mahler, embora o autor seja um dos músicos mais inteligentes e eruditos do século, sai perdendo em interesse para as anedotas de um texto como o de Bruce Chatwin sobre os diários de Ernst Jnger.
Chatwin não apresenta nenhuma idéia original, mas domina com maestria essa técnica de narrar o mais interessante nos fatos, extraindo deles uma possibilidade de graça que não precisa necessariamente se expressar da forma como ocorreram na realidade.
Era das biografias
O mesmo acontece com Richard Ellmann escrevendo sobre Joyce (narrando as aventuras amorosas reais em que o escritor baseou muitas das aventuras amorosas de seus personagens) ou no sensível relato que Brodsky faz da viúva de Mandelstam.
No texto de Robert Lowell sobre Silvia Plath, por exemplo, o que acaba interessando é menos algum tipo de análise poética do que as lembranças que o autor tem da poeta quando moça, em sala de aula.
Ou seja, com todas as suas qualidades (inquestionáveis no que se propõe), o "NYRB" acaba prefigurando uma época (a nossa) em que os leitores (e grande parte dos jornalistas ditos culturais) correm às livrarias em busca da biografia de um escritor, mas podem passar o resto da vida sem ler uma linha do que ele escreveu.

Livro: 30 Anos do The New York Review of Books (485 págs.)
Organizadores: Robert B. Silvers, Barbara Epstein e Rea S. Hederman
Tradução: Gilson César Cardoso de Sousa
Editora: Paz e Terra



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