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MARCELO COELHO
Um dia ameno com Hitler e Eva Braun
Caetano Veloso observou, com razão, que "de perto ninguém é normal". O contrário também acontece. Assassinos
e ditadores podem até ser afáveis
na intimidade: gostam de jardinagem, brincam com os netinhos,
são cavalheiros civilizados, normalíssimos.
"Moloch", filme de Alexander
Sokurov, em cartaz no cine Vitrine, recria a intimidade de Adolf
Hitler. Ele, sua amante Eva
Braun e dois amigos -Joseph
Goebbels e Martin Bormann, com
as respectivas senhoras- passam
um dia agradável no refúgio alpino de Berchtesgarden. Contam
piadas, dançam, divertem-se...
Não, não são nem um pouco
normais. Vê-se o tempo todo que
Hitler é completamente louco.
Mas o que intriga no lento e nebuloso filme de Sokurov é que a
loucura de Hitler não é muito do
jeito que esperávamos que fosse.
Saímos do cinema sem saber bem
o que pensar.
A incompreensibilidade de Hitler como que se transmite ao filme: diálogos absurdos alternam-se com cenas muito estudadas, coreografias sobre um fundo verde-pântano, sombras de soldados na
neblina, estetizações gélidas num
cenário wagneriano.
De alguma forma, estamos sempre esperando o horrível hollywoodiano ou sua contrapartida
sinistra, o "normal", o doméstico
hollywoodiano: ou Lecter ou
Bush. "Moloch" é outra coisa bem
mais interessante.
Desde as primeiras cenas, tudo
é muito ameaçador: o palácio-fortaleza aparece no meio da névoa. Dentro, está Eva Braun, nua,
esperando Hitler e seus convidados. Um bom tempo passa antes
que eles cheguem. Eva Braun fica
fazendo ginástica e sai à varanda,
onde treina poses olímpicas. Na
luz esverdeada do cenário, tem
algo de peixe performático; quando se imobiliza, é como uma estátua que, em vez de mármore, fosse de borracha branca.
Parece fazer frio o tempo todo, e
a loucura de Hitler, para nosso espanto, é desigual, "inconfiável",
nada tem de um delírio sistemático e peremptório. Ele se queixa da
saúde, está convencido de que
tem câncer; Eva Braun consola-o,
ele muda de humor, faz dengues
de criança.
O mal-estar que isso provoca no
espectador é tremendo -e é uma
das maiores qualidades do filme.
Seria fácil traduzir para a esfera
privada o horror sistemático do
nazismo, fazer com que o filme
apresentasse, em ponto menor,
um retrato da perversão, do sadismo, da brutalidade do regime.
"Moloch" não reproduz o horror;
no castelo, esse horror está presente como pura e inominável
ameaça.
Eva Braun diz, a certa altura,
que fulano de tal deveria ser
mandado para Auschwitz. Os outros personagens ficam gelados:
"Auschwitz? Nunca ouvi falar
desse lugar", diz Hitler. Incrível
que o filme de Sokurov tenha sido
criticado por essa cena -como se
tivesse pretendido dizer que Hitler, de fato, desconhecia a existência dos campos de extermínio.
É bem o contrário. Hitler finge o
tempo todo, e isso determina um
clima de ameaça psicológica permanente sobre seus asseclas. Depois do jantar, Hitler tira uma soneca na poltrona. Goebbels e Bormann ficam mais à vontade. Hitler então acorda; diz que tinha
fingido dormir para ouvir o que
diziam.
No fim, o próprio espectador fica em dúvida: Hitler dormiu ou
fingiu? Não importa. O "Führer"
se entrega agora a uma longa especulação: por que o bigode dos
tchecos pende para baixo? Goebbels e Bormann não sabem o que
responder. Hitler dá uma razão
absurda -não lembro qual.
Em seguida, é como se Hitler tivesse percebido que estava delirando. Pergunta aos interlocutores sobre o que tinha falado. Respondem-lhe: sobre o bigode dos
tchecos. "Sim, mas também sobre
outra coisa", diz Hitler. "Sobre a
guerra."
Uma vez que é necessário a todos os asseclas acreditar que Hitler é um gênio, eles imediatamente assentem: sim, entenderam a alusão. O mecanismo do
terror totalitário vai sendo exposto com clareza por Sokurov: até os
assessores diretos do ditador não
ousam duvidar dele. Ainda que
estejam convencidos de sua loucura, é mais prudente participar
da farsa.
A única esperança de sair do pesadelo estaria nas mulheres: Eva
Braun e suas companheiras parecem um pouco mais saudáveis e
realistas. Mas aqui se cria uma
outra forma de cumplicidade,
não na loucura, mas na estupidez. Por medo, por amor ou por
desonestidade, Eva Braun se faz
de mais burra do que é. Depois de
falar de Auschwitz, corrige-se,
reafirma não entender nada de
política.
Para o Reich, as mulheres deveriam ter apenas o papel de geradoras de filhos. A idéia de reprodução, contudo, assombra os delírios de Hitler: fala em larvas de
moscas, manifesta nojo diante de
uma ninhada de cachorrinhos.
Não vamos além; "Moloch" não
cai na armadilha de tentar explicar a "psicologia" de Hitler; o filme tem algo de uma equação que
não fecha.
Lembro-me de uns terríveis
exercícios de matemática em que,
de repente, eu percebia que havia
errado em algum ponto porque o
resultado terminava sendo 0 = 0.
Eva Braun diz no filme que seu
pai considerava Hitler "um zero à
esquerda". Ei-lo, nos seus momentos de descontração, cercado
de outras nulidades, enquanto ali
perto se organiza o extermínio.
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