São Paulo, quarta-feira, 14 de março de 2001

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MARCELO COELHO

Um dia ameno com Hitler e Eva Braun

Caetano Veloso observou, com razão, que "de perto ninguém é normal". O contrário também acontece. Assassinos e ditadores podem até ser afáveis na intimidade: gostam de jardinagem, brincam com os netinhos, são cavalheiros civilizados, normalíssimos.
"Moloch", filme de Alexander Sokurov, em cartaz no cine Vitrine, recria a intimidade de Adolf Hitler. Ele, sua amante Eva Braun e dois amigos -Joseph Goebbels e Martin Bormann, com as respectivas senhoras- passam um dia agradável no refúgio alpino de Berchtesgarden. Contam piadas, dançam, divertem-se...
Não, não são nem um pouco normais. Vê-se o tempo todo que Hitler é completamente louco. Mas o que intriga no lento e nebuloso filme de Sokurov é que a loucura de Hitler não é muito do jeito que esperávamos que fosse. Saímos do cinema sem saber bem o que pensar.
A incompreensibilidade de Hitler como que se transmite ao filme: diálogos absurdos alternam-se com cenas muito estudadas, coreografias sobre um fundo verde-pântano, sombras de soldados na neblina, estetizações gélidas num cenário wagneriano.
De alguma forma, estamos sempre esperando o horrível hollywoodiano ou sua contrapartida sinistra, o "normal", o doméstico hollywoodiano: ou Lecter ou Bush. "Moloch" é outra coisa bem mais interessante.
Desde as primeiras cenas, tudo é muito ameaçador: o palácio-fortaleza aparece no meio da névoa. Dentro, está Eva Braun, nua, esperando Hitler e seus convidados. Um bom tempo passa antes que eles cheguem. Eva Braun fica fazendo ginástica e sai à varanda, onde treina poses olímpicas. Na luz esverdeada do cenário, tem algo de peixe performático; quando se imobiliza, é como uma estátua que, em vez de mármore, fosse de borracha branca.
Parece fazer frio o tempo todo, e a loucura de Hitler, para nosso espanto, é desigual, "inconfiável", nada tem de um delírio sistemático e peremptório. Ele se queixa da saúde, está convencido de que tem câncer; Eva Braun consola-o, ele muda de humor, faz dengues de criança.
O mal-estar que isso provoca no espectador é tremendo -e é uma das maiores qualidades do filme. Seria fácil traduzir para a esfera privada o horror sistemático do nazismo, fazer com que o filme apresentasse, em ponto menor, um retrato da perversão, do sadismo, da brutalidade do regime. "Moloch" não reproduz o horror; no castelo, esse horror está presente como pura e inominável ameaça.
Eva Braun diz, a certa altura, que fulano de tal deveria ser mandado para Auschwitz. Os outros personagens ficam gelados: "Auschwitz? Nunca ouvi falar desse lugar", diz Hitler. Incrível que o filme de Sokurov tenha sido criticado por essa cena -como se tivesse pretendido dizer que Hitler, de fato, desconhecia a existência dos campos de extermínio.
É bem o contrário. Hitler finge o tempo todo, e isso determina um clima de ameaça psicológica permanente sobre seus asseclas. Depois do jantar, Hitler tira uma soneca na poltrona. Goebbels e Bormann ficam mais à vontade. Hitler então acorda; diz que tinha fingido dormir para ouvir o que diziam.
No fim, o próprio espectador fica em dúvida: Hitler dormiu ou fingiu? Não importa. O "Führer" se entrega agora a uma longa especulação: por que o bigode dos tchecos pende para baixo? Goebbels e Bormann não sabem o que responder. Hitler dá uma razão absurda -não lembro qual.
Em seguida, é como se Hitler tivesse percebido que estava delirando. Pergunta aos interlocutores sobre o que tinha falado. Respondem-lhe: sobre o bigode dos tchecos. "Sim, mas também sobre outra coisa", diz Hitler. "Sobre a guerra."
Uma vez que é necessário a todos os asseclas acreditar que Hitler é um gênio, eles imediatamente assentem: sim, entenderam a alusão. O mecanismo do terror totalitário vai sendo exposto com clareza por Sokurov: até os assessores diretos do ditador não ousam duvidar dele. Ainda que estejam convencidos de sua loucura, é mais prudente participar da farsa.
A única esperança de sair do pesadelo estaria nas mulheres: Eva Braun e suas companheiras parecem um pouco mais saudáveis e realistas. Mas aqui se cria uma outra forma de cumplicidade, não na loucura, mas na estupidez. Por medo, por amor ou por desonestidade, Eva Braun se faz de mais burra do que é. Depois de falar de Auschwitz, corrige-se, reafirma não entender nada de política.
Para o Reich, as mulheres deveriam ter apenas o papel de geradoras de filhos. A idéia de reprodução, contudo, assombra os delírios de Hitler: fala em larvas de moscas, manifesta nojo diante de uma ninhada de cachorrinhos.
Não vamos além; "Moloch" não cai na armadilha de tentar explicar a "psicologia" de Hitler; o filme tem algo de uma equação que não fecha.
Lembro-me de uns terríveis exercícios de matemática em que, de repente, eu percebia que havia errado em algum ponto porque o resultado terminava sendo 0 = 0. Eva Braun diz no filme que seu pai considerava Hitler "um zero à esquerda". Ei-lo, nos seus momentos de descontração, cercado de outras nulidades, enquanto ali perto se organiza o extermínio.



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