São Paulo, quinta-feira, 14 de março de 2002

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"UM BONDE CHAMADO DESEJO"

Cia. Livre realiza a vontade de uma geração

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Um Bonde Chamado Desejo" é um clássico, ou seja, boa parte da platéia vai ao teatro já conhecendo a história -a decadência de Blanche Dubois, que se refugia na casa da irmã Stella para fugir do passado e sucumbir ao presente vulgar de seu cunhado Stanley- e com sua versão favorita na cabeça (a de Marlon Brando ou a de Maria Fernanda, por exemplo) para checar se a presente direção é submissa ou ousada demais, ou se os atores "entenderam" seus papéis. Se for insuficiente, é logo esquecida, sem prejuízo ao texto. Se for bem-sucedida, marca uma geração.
Esse é o caso da montagem da Cia. Livre. Baseada em um rigoroso trabalho de análise, a direção de Cibele Forjaz, que também tem formação de atriz e iluminadora, concretiza uma inteligente leitura do texto, integrando os níveis do espetáculo a ponto de ser difícil adivinhar se determinado achado partiu da cenógrafa Simone Mina, da iluminadora Alessandra Domingues, da trilha de Cacá Machado ou de laboratórios dos atores: é como um todo que a Cia Livre é excelente.
A maneira como as personagens se observam, adivinhando blefes, forçando confissões, faz com que o jogo de pôquer que alinhava a história vá além da mera cor local e se torne metáfora. As quatro paredes invisíveis que estabelecem o naturalismo da interpretação, simples fitas elásticas delimitando uma gaiola cercada pelo público, são deformadas no decorrer da peça para se tornarem uma expressionista teia de aranha, quando Blanche renuncia à afetação aristocrática e se declara "uma tarântula". Um som de tiro, pedido pelo texto como um trauma do passado, é substituído por um estouro de lâmpada, e todo o jogo metalinguístico da penumbra mágica contra a crueza da luz ganha outra dimensão.
Sem chamar atenção, Nova Orleans vem para o Brasil às vezes, com sambas na trilha, camisas de futebol no figurino, a fluida tradução de Vadim Nikitin e a espontaneidade da figuração. Dora Carvalho e Eudes Figueiredo compensam a limitação técnica remetendo saborosamente a tipos populares. Peterson Negreiros, é verdade, não se arrisca muito na sua ponta como entregador, e João Signorelli se deixa aprisionar pelo bom-mocismo de Harold Mitchell, o inocente útil com quem Blanche quase se casa; mas o jogo estabelecido pelo trio de protagonistas faz com que esse bonde seja imperdível.
Milhem Cortaz faz um Stanley Kowalski viril e frágil, sensual e infantil, infame e irreverente. Isabel Teixeira deixa clara não só a função de amparo de Stella (tanto com sua irmã quanto com seu marido) como também a sua própria sensualidade.
Instigada por Milhem e apoiada por Isabel, a atuação de Leona Cavalli é inesquecível. Ponto de convergência da generosidade criativa da Cia. Livre, Leona tece uma rede sobre a angústia de seu desejo com agilidade verbal e sensualidade de gestos. Faz de sua Blanche uma Fedra -a personagem de Racine que, segundo Proust, permitia determinar uma geração pela atriz que se tinha visto representá-la. Para a nova geração, a partir de agora, o desejo se chama Leona Cavalli.


Um Bonde Chamado Desejo     
Texto: Tennessee Williams
Direção: Cibele Forjaz
Com: Leona Cavalli, Milhem Cortaz, Peterson Negreiros, Eudes Figueiredo, Dora Carvalho, Vanessa Poitena
Onde: Sesc Belenzinho (av. Álvaro Ramos, 991, SP, tel. 0/xx/11/6605-8143)
Quando: de sex. a dom., às 20h; até 28/4
Quanto: R$ 12




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