São Paulo, segunda-feira, 14 de março de 2005

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NELSON ASCHER

Humor judaico

Anos atrás, num "Seder" (jantar da Páscoa judaica), uma conviva americana falou de uma amiga sua que não tinha nenhum senso de humor. O problema era tão grave que a coitada se matriculara num curso destinado a curar pessoas com deficiências similares: um curso de senso de humor.
Poderia parecer piada e, dado que o caso foi relatado num "Seder", portanto numa cerimônia cujos participantes, devido à sua etnia, dispõem, se não de um cromossomo inteiro, pelo menos de um gene extra dedicado a essa dimensão espiritual específica, seria tentador tomá-lo como anedota imaginativa.
Mas numa nação que, como os EUA, oferece cursos de escrita criativa (creative writing) em suas universidades, um país no qual os lucros até de uma meia idéia ruim se contam em cifras de seis ou sete dígitos (e em moeda forte), tudo é possível. E, pensando bem, se nossa espécie sobreviveu (quem sabe como) uns bons (ou maus) 150 mil anos sem aulas de educação sexual, enquanto hoje esta se tornou uma disciplina obrigatória, por que não a educação humorística?
Há uma piada judaica, provavelmente russa e do final do século 19, que encapsula em si um verdadeiro tratado sobre o assunto. Ei-la.
Se você conta uma piada a um "mujique" (um camponês), ele ri três vezes: quando você a conta, quando a explica e quando ele a entende. Se você a conta a um nobre, ele ri duas vezes: quando você a conta e quando a explica, pois, no caso dele, entendê-la está fora de questão. Se você a conta a um oficial do Exército imperial, ele ri uma vez: quando você a conta, já que é orgulhoso demais para pedir-lhe que a explique e tampouco será capaz de entendê-la. Se você conta, porém, uma piada a outro judeu, ele logo a interrompe dizendo "Essa é velha", e passa imediatamente a demonstrar quão melhor é capaz de contá-la.
O humor judaico, auxiliado, por exemplo, pelos filmes de Woody Allen, alcançou, no século 20, o mundo inteiro. Suas raízes estão, todavia, na Europa, e é dos paradoxos peculiares com os quais os judeus de lá conviviam que ele se origina. Simplificando, havia naquele continente que era (e não deixou e ser) rigidamente estratificado em termos de classes e avesso à mobilidade social, dois tipos de humor: o das elites (aristocratas primeiro, depois burgueses) e o das massas (camponeses e, mais tarde, proletários).
As piadas dos poderosos zombavam freqüentemente de seus súditos e, em particular, divertiam-se explicitando as inadequações comportamentais daqueles que tentavam ou, mal e mal, haviam conseguido transpor algumas barreiras hierárquicas. Seu humor era letrado, desdenhoso, pressupunha um código complexo de hábitos ou condutas e servia para punir os que não o tinham adequadamente dominado.
Quanto ao dos camponeses, este se mostrava concomitantemente rancoroso e estóico, era iletrado e oral, vinculava-se não raro ao corpo e a suas funções "baixas" e não prescindia de referências genitais ou fecais. Além de reclamar da miséria e, num gesto de vingança simbólica, fustigar os poderosos, ele cumpria a função de veicular conselhos úteis: "Jamais coma ameixas com um aristocrata, porque ele mastigará a fruta e cuspirá o caroço na sua cara".
Os judeus, não obstante viverem, tanto no que diz respeito ao "status" como economicamente, perto da base da pirâmide, eram herdeiros de uma cultura letrada. Trocando em miúdos, suas piadas brotavam de uma situação material e política que não era melhor que a do restante dos oprimidos, porém utilizavam recursos restritos, antes da modernidade, às elites alfabetizadas. Excluídos dos dois grandes blocos sociais (os camponeses eram miseráveis, mas não "excluídos"), os judeus, através de seu humor, simpatizavam com/e criticavam ambos.
Como tal humor traduzia o ponto de vista de um "outsider" envolvido, ou seja, de alguém que, proibido de participar do jogo, sofrerá, mesmo assim, as conseqüências do desenlace, seu tema central, convertendo-se no questionamento e exploração da própria condição ambígua, assumiu a forma da auto-ironia. Até certo ponto, essa veia coincidia com a que se exibe no anedotário de algumas nações pequenas ou fracas que a história colocou à sombra de grandes potências predatórias. O humor dos tchecos, húngaros e poloneses ocupados pela Rússia soviética poderia facilmente se confundir com o dos judeus.
Convém aqui distinguir o humor judaico da "piada de judeu". Esta última é uma das manifestações do anti-semitismo tão ubíquo hoje em dia quanto nos anos 30 e se concentra obsessivamente numa só questão: a relação que a etnia satirizada manteria com o dinheiro (ou o poder). Os europeus atribuem semelhante materialismo aos norte-americanos, e quem respondeu bem a isso foi Arthur Miller, dramaturgo morto recentemente. Entrevistando-o, a escritora italiana Oriana Fallacci lhe perguntou por que os compatriotas dele gostavam tanto de dinheiro. Miller retrucou: "E os seus não gostam?".
Ao contrário dos que, lançando mão de estereótipos, os escarnecem de fora, os judeus preferem em geral debochar dos pretensiosos entre seus pares, denunciando-lhes o que chamam de "hutzpá", uma variedade da "cara-de-pau" classicamente ilustrada pela defesa, diante do tribunal, do rapaz que, após assassinar pai e mãe, pede clemência por ser "um pobre órfão". Conta-se, pois, que quando Israel se preparava para a guerra da independência (1948), um velhinho se apresentou à junta de alistamento e, logo que o sargento lhe observou que era idoso demais para ser soldado, ele argumentou: "E, por acaso, seu Exército não precisa de generais?".


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