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NELSON ASCHER
Humor judaico
Anos atrás, num "Seder"
(jantar da Páscoa judaica),
uma conviva americana falou de
uma amiga sua que não tinha nenhum senso de humor. O problema era tão grave que a coitada se
matriculara num curso destinado
a curar pessoas com deficiências
similares: um curso de senso de
humor.
Poderia parecer piada e, dado
que o caso foi relatado num "Seder", portanto numa cerimônia
cujos participantes, devido à sua
etnia, dispõem, se não de um cromossomo inteiro, pelo menos de
um gene extra dedicado a essa dimensão espiritual específica, seria
tentador tomá-lo como anedota
imaginativa.
Mas numa nação que, como os
EUA, oferece cursos de escrita
criativa (creative writing) em
suas universidades, um país no
qual os lucros até de uma meia
idéia ruim se contam em cifras de
seis ou sete dígitos (e em moeda
forte), tudo é possível. E, pensando bem, se nossa espécie sobreviveu (quem sabe como) uns bons
(ou maus) 150 mil anos sem aulas
de educação sexual, enquanto hoje esta se tornou uma disciplina
obrigatória, por que não a educação humorística?
Há uma piada judaica, provavelmente russa e do final do século 19, que encapsula em si um verdadeiro tratado sobre o assunto.
Ei-la.
Se você conta uma piada a um
"mujique" (um camponês), ele ri
três vezes: quando você a conta,
quando a explica e quando ele a
entende. Se você a conta a um nobre, ele ri duas vezes: quando você
a conta e quando a explica, pois,
no caso dele, entendê-la está fora
de questão. Se você a conta a um
oficial do Exército imperial, ele ri
uma vez: quando você a conta, já
que é orgulhoso demais para pedir-lhe que a explique e tampouco
será capaz de entendê-la. Se você
conta, porém, uma piada a outro
judeu, ele logo a interrompe dizendo "Essa é velha", e passa imediatamente a demonstrar quão
melhor é capaz de contá-la.
O humor judaico, auxiliado,
por exemplo, pelos filmes de
Woody Allen, alcançou, no século
20, o mundo inteiro. Suas raízes
estão, todavia, na Europa, e é dos
paradoxos peculiares com os
quais os judeus de lá conviviam
que ele se origina. Simplificando,
havia naquele continente que era
(e não deixou e ser) rigidamente
estratificado em termos de classes
e avesso à mobilidade social, dois
tipos de humor: o das elites (aristocratas primeiro, depois burgueses) e o das massas (camponeses e,
mais tarde, proletários).
As piadas dos poderosos zombavam freqüentemente de seus
súditos e, em particular, divertiam-se explicitando as inadequações comportamentais daqueles que tentavam ou, mal e
mal, haviam conseguido transpor
algumas barreiras hierárquicas.
Seu humor era letrado, desdenhoso, pressupunha um código complexo de hábitos ou condutas e
servia para punir os que não o tinham adequadamente dominado.
Quanto ao dos camponeses, este
se mostrava concomitantemente
rancoroso e estóico, era iletrado e
oral, vinculava-se não raro ao
corpo e a suas funções "baixas" e
não prescindia de referências genitais ou fecais. Além de reclamar
da miséria e, num gesto de vingança simbólica, fustigar os poderosos, ele cumpria a função de
veicular conselhos úteis: "Jamais
coma ameixas com um aristocrata, porque ele mastigará a fruta e
cuspirá o caroço na sua cara".
Os judeus, não obstante viverem, tanto no que diz respeito ao
"status" como economicamente,
perto da base da pirâmide, eram
herdeiros de uma cultura letrada.
Trocando em miúdos, suas piadas brotavam de uma situação
material e política que não era
melhor que a do restante dos
oprimidos, porém utilizavam recursos restritos, antes da modernidade, às elites alfabetizadas.
Excluídos dos dois grandes blocos
sociais (os camponeses eram miseráveis, mas não "excluídos"), os
judeus, através de seu humor,
simpatizavam com/e criticavam
ambos.
Como tal humor traduzia o
ponto de vista de um "outsider"
envolvido, ou seja, de alguém que,
proibido de participar do jogo, sofrerá, mesmo assim, as conseqüências do desenlace, seu tema
central, convertendo-se no questionamento e exploração da própria condição ambígua, assumiu
a forma da auto-ironia. Até certo
ponto, essa veia coincidia com a
que se exibe no anedotário de algumas nações pequenas ou fracas
que a história colocou à sombra
de grandes potências predatórias.
O humor dos tchecos, húngaros e
poloneses ocupados pela Rússia
soviética poderia facilmente se
confundir com o dos judeus.
Convém aqui distinguir o humor judaico da "piada de judeu".
Esta última é uma das manifestações do anti-semitismo tão ubíquo hoje em dia quanto nos anos
30 e se concentra obsessivamente
numa só questão: a relação que a
etnia satirizada manteria com o
dinheiro (ou o poder). Os europeus atribuem semelhante materialismo aos norte-americanos, e
quem respondeu bem a isso foi
Arthur Miller, dramaturgo morto
recentemente. Entrevistando-o, a
escritora italiana Oriana Fallacci
lhe perguntou por que os compatriotas dele gostavam tanto de dinheiro. Miller retrucou: "E os seus
não gostam?".
Ao contrário dos que, lançando
mão de estereótipos, os escarnecem de fora, os judeus preferem
em geral debochar dos pretensiosos entre seus pares, denunciando-lhes o que chamam de "hutzpá", uma variedade da "cara-de-pau" classicamente ilustrada pela
defesa, diante do tribunal, do rapaz que, após assassinar pai e
mãe, pede clemência por ser "um
pobre órfão". Conta-se, pois, que
quando Israel se preparava para
a guerra da independência
(1948), um velhinho se apresentou à junta de alistamento e, logo
que o sargento lhe observou que
era idoso demais para ser soldado, ele argumentou: "E, por acaso, seu Exército não precisa de generais?".
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