|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Carrière reescreve histórias do mundo
Em nova obra, escritor francês relata anedotas judaicas, textos zen-budistas e parábolas árabes
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Aos 77 anos, o escritor, roteirista e dramaturgo francês
Jean-Claude Carrière está
preocupado com o futuro das
narrativas, das palavras, das
imagens e das línguas. E combate essa inquietação contando
histórias próprias e alheias.
Acaba de sair no Brasil seu
novo livro, "Contos Filosóficos
do Mundo Inteiro", publicado
no ano passado na França como segundo volume da coletânea "O Círculo dos Mentirosos". São centenas de pequenas
histórias, quase todas anônimas, extraídas das mais diversas tradições. Há anedotas judaicas, parábolas árabes, passagens de evangelhos apócrifos,
"koans" zen-budistas.
Carrière reconta tudo isso
com a mesma desenvoltura
com que roteirizou filmes de
Buñuel, Godard, Wajda e Peter
Brook, e adaptou o épico hindu
"Mahabharata" para o teatro e
o cinema.
Em entrevista por e-mail, o
escritor diz que seu ideal de relato é aquele em que "o narrador desaparece por trás de seus
personagens, não diz jamais
"eu", mas isso não o impede de
fazer passar suas ideias ou seus
gostos pessoais, algumas vezes
malandramente".
Malandragem é uma palavra
que serve para caracterizar boa
parte das histórias. Várias delas
são protagonizadas por uma figura lendária, Nasreddin Hodja, um misto de pícaro e sábio
popular.
"Dizem que Nasreddin foi o
bufão de Tamerlão [conquistador turco do século 14]. Sua glória é considerável em todos os
países muçulmanos, sobretudo
no Irã e na Turquia. É encontrado também no Egito, no norte da África, na Sicília e na tradição judaica", diz Carrière.
"Ele representa à perfeição a
esperteza popular, mistura de
ingenuidade aparente e profunda malandragem. É a porção de liberdade de que todos
os povos têm necessidade."
Chicotada
Que ninguém espere, portanto, narrativas edificantes, politicamente corretas e com "moral da história". Carrière fez sua
opção preferencial pela derrisão, pelas situações inesperadas e desconcertantes.
Não por acaso, uma das formas de sua predileção é o
"koan", minúsculos casos, situações ou diálogos paradoxais
que fazem parte da tradição
zen-budista. "O "koan" zen é como uma chicotada. Sua forma
breve nos surpreende, nos
obriga a nos interrogar e não
necessariamente a responder."
Carrière reescreveu os relatos tentando preservar o espírito e o sabor originais, sem "europeizá-los". Sua preocupação
é com o esmagamento das culturas ditas periféricas. "Palavras, expressões e até mesmo
línguas desaparecem o tempo
todo em proveito de poucas línguas dominantes que, por seu
turno, não se enriquecem."
Contar as histórias do mundo é antídoto contra isso. "Fico
impressionado ao ver que esses
contos velozes, levados pelo
vento das caravanas ou dos
oceanos, sobrevivem às vezes
mais solidamente que os edifícios de pedra. É uma das vitórias do imaginário sobre o real."
CONTOS FILOSÓFICOS DO MUNDO INTEIRO
Autor: Jean-Claude Carrère
Tradução: Cordelia Magalhães
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 49,90 (304 págs.)
Texto Anterior: Crítica/"Meu Amor": Beatriz Bracher não teme riscos em seus contos brutais Próximo Texto: Vitrine Índice
|