São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

Texto Anterior | Índice

ANÁLISE

Charges buscavam instantâneo improvisado

MARIO VITOR SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Só conheci Glauco no trabalho na Folha. Lembro-me de que certa vez a polícia o levou à Redação num sábado de manhã. Tinha sido detido sem documentos, e os policiais só o liberariam após saber se trabalhava no jornal, se era o Glauco da Folha. Os papeis foram invertidos (a imprensa foi checada), e a polícia foi embora.
Se ele fosse para a delegacia, naquele dia não tinha charge. O melhor era dizer logo que trabalhava na Folha, trazer os policiais e pegar a carona. Ao sinal de cobrança, dissolvia qualquer chance e nos punha ambos de volta à humanidade com um sorriso. Sem qualquer vaidade, ele estava além dessas coisas.
Seu humor evoluía no sentido inverso do convencional e da amargura. Suas charges pareciam buscar o mais primitivo, instantâneo, imediato e improvisado.
Procurava uma "involução", a expressão de uma verdade que brotasse do próprio fato, antes de ser alterado pelos diversos sentidos que a notícia pode ter. Fazia assim uma espécie de antijornalismo.
Parecia não querer saber muito. Evitava a reflexão e suas armadilhas. Suas charges fluíam de uma aparente falta de esforço, na pressão, no limite do absurdo, mas como um espasmo natural. Colagens de trabalhos anteriores eram reconfiguradas ao sabor de uma imaginação desafetada, como expedientes de última hora.
O resultado era uma poderosa sensação de velocidade. A grande contribuição de Glauco ao jornalismo foi justamente o sentido de urgência intrínseca que imprimia ao seu humor. Lá atrás, quando soube de seu envolvimento religioso, achei que fosse perder a graça.
Que nada. Nem pelas crenças ele se deixou enrijecer. Seu rosto me trazia a imagem de um desses aventureiros que encaram a vida -e a morte- de forma diferente, como um mergulhador de Cousteau, alguém que reúne identidade muito grande entre o que faz e o que é.

MARIO VITOR SANTOS foi secretário de Redação e ombudsman da Folha ; atualmente é diretor-executivo da Casa do Saber



Texto Anterior: Mais de cem hinos daimistas embalam enterro em São Paulo
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.