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ANÁLISE
Charges buscavam instantâneo improvisado
MARIO VITOR SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Só conheci Glauco no trabalho na Folha. Lembro-me de
que certa vez a polícia o levou à
Redação num sábado de manhã. Tinha sido detido sem documentos, e os policiais só o liberariam após saber se trabalhava no jornal, se era o Glauco
da Folha. Os papeis foram invertidos (a imprensa foi checada), e a polícia foi embora.
Se ele fosse para a delegacia,
naquele dia não tinha charge. O
melhor era dizer logo que trabalhava na Folha, trazer os policiais e pegar a carona. Ao sinal
de cobrança, dissolvia qualquer
chance e nos punha ambos de
volta à humanidade com um
sorriso. Sem qualquer vaidade,
ele estava além dessas coisas.
Seu humor evoluía no sentido inverso do convencional e
da amargura. Suas charges pareciam buscar o mais primitivo, instantâneo, imediato e improvisado.
Procurava uma "involução", a expressão de uma
verdade que brotasse do próprio fato, antes de ser alterado
pelos diversos sentidos que a
notícia pode ter. Fazia assim
uma espécie de antijornalismo.
Parecia não querer saber
muito. Evitava a reflexão e suas
armadilhas. Suas charges
fluíam de uma aparente falta
de esforço, na pressão, no limite do absurdo, mas como um
espasmo natural. Colagens de
trabalhos anteriores eram reconfiguradas ao sabor de uma
imaginação desafetada, como
expedientes de última hora.
O resultado era uma poderosa sensação de velocidade. A
grande contribuição de Glauco
ao jornalismo foi justamente o
sentido de urgência intrínseca
que imprimia ao seu humor.
Lá atrás, quando soube de
seu envolvimento religioso,
achei que fosse perder a graça.
Que nada. Nem pelas crenças
ele se deixou enrijecer. Seu rosto me trazia a imagem de um
desses aventureiros que encaram a vida -e a morte- de forma diferente, como um mergulhador de Cousteau, alguém
que reúne identidade muito
grande entre o que faz e o que é.
MARIO VITOR SANTOS foi secretário de Redação e ombudsman da Folha ; atualmente é diretor-executivo da Casa do Saber
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