São Paulo, sábado, 14 de março de 1998

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RESENHA
Eduardo Silva vê século 19 pelos olhos da vítima

da Equipe de Articulistas


A Guerra do Paraguai (1864-70) foi a primeira grande chance de libertação para muitos escravos negros das lavouras brasileiras. O Exército e a Marinha ofereceram liberdade aos escravos que quisessem servir de bucha de canhão -os chamados "voluntários da pátria"- no front.
Entre esses "voluntários" estava Cândido da Fonseca Galvão, nascido em Lençóis (BA) por volta de 1845, filho de pai africano da nação ioruba. A guerra mudaria a vida de Galvão, elevado ao posto de alferes por atos de bravura.
Ao voltar em 1870, trocou Salvador pelo Rio de Janeiro, onde fez fama ao se auto-intitular rei ("obá" em ioruba) "dom Obá 2º d'África", espécie de porta-voz não-oficial do povo negro brasileiro, escrever artigos para jornais, frequentar a corte de dom Pedro 2º com a desenvoltura e a elegância de trajes dos senhores.
"Alto, forte, majestoso, vestindo sempre sobrecasaca, cartola no cimo da gaforinha, pince-nez de vidros fumados ou monóculo de aro de ouro, o príncipe Obá era a figura mais popular da capital do Império", assim Galvão é descrito por Câmara Cascudo em seu "Dicionário do Folclore Brasileiro".
"Vida, Tempo e Pensamento de um Homem Livre de Cor" é o subtítulo desse livro do historiador Eduardo Silva, admirável esforço de pesquisa para recontar a história do Brasil a partir da passagem de um homem comum por essas terras: o negro emancipado, uma raridade da sociedade civil, Cândido da Fonseca Galvão.
Reconstruir a vida de dom Obá, "apesar da natureza fragmentária da documentação", investigar a natureza de suas relações com o imperador dom Pedro 2º e a natureza de sua liderança dentro da comunidade negra, analisar suas idéias sobre questões políticas e sociais de seu tempo, discutir fontes e influências de seus pensamentos -esses os objetivos atingidos com brilhantismo pelo trabalho de Eduardo Silva.
Sua biografia do "príncipe do povo" inclui apêndices com cartas, memoriais e artigos de autoria de Galvão sobre a abolição da escravatura e as relações inter-raciais publicados em jornais da época, além de notas explicativas, bibliografia e índice onomástico.
Para além da vida pessoal de seu personagem -um "tipo de rua meio amalucado para a sociedade de bem, mas reverenciado como príncipe real entre escravos, libertos e homens livres de cor"-, a pesquisa de Eduardo Silva consegue examinar com destreza o outro lado da sociedade escravocrata do país no século 19, o lado visto pelos olhos da vítima.
Sério, bem escrito, o livro presta um valoroso serviço de reconquista do Brasil por meio da história.
(MARILENE FELINTO)

Livro: Dom Obá 2º D'África, o Príncipe do Povo Autor: Eduardo Silva Lançamento: Cia. das Letras Quanto: R$ 22 (263 págs.)


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