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CARLOS HEITOR CONY
A criação de Gore Vidal
Cerca de 500 anos antes da
hegemonia do Império Romano e 445 anos antes de Cristo,
alguém disse a Xerxes que o futuro da humanidade estava a "leste" da civilização até então conhecida. Em termos comparativos, seria o mesmo que alguém
tentar convencer o Pentágono de
que o futuro da civilização estaria
no pólo Ártico ou, como emergência topográfica, no pólo Antártico.
Cito ao acaso um trecho quase
insignificante de "Criação", o
grande em todos os sentidos (pelo
volume, pelo conteúdo e pela linguagem) romance histórico de
Gore Vidal, publicado em 1981,
quando o autor atingia sua plenitude aos 56 anos de idade.
Penetrando num gênero recorrente da literatura universal, o
romance com fundo pesquisado,
buscado e interpretado na história oficial ou oficiosa, a obra de
Gore Vidal é um dos momentos
literários que podem ser considerados monumentos, na mesma
prateleira dos clássicos de Alexandre Dumas, André Maurois,
Henri Troyat, Emil Ludwig e Stefan Zweig.
Discute-se a validade da história assim romanceada. No século
19, apesar do esforço quase arqueológico de Ernest Renan para
escrever sua clássica vida de Jesus,
tanto a Igreja Católica como as
demais igrejas nascidas do cristianismo, foram consensuais em
condenar a obra, hoje considerada um dos pontos culminantes da
literatura francesa e universal.
O historiador convencional e o
crítico profissional sentem arrepios na pele e na consciência
quando encontram, como neste
livro de Gore Vidal, detalhes marginais como "Xerxes sorriu e mexeu-se na rede". Ou então, "Danton cerrou as sobrancelhas e encarou Robespierre com desprezo"
(Stefan Zweig). Qual a fonte confiável para estabelecer que Xerxes
estava na rede e que Danton
olhou com desprezo para o homem que o mandaria para a guilhotina?
Gore Vidal não é historiador,
no sentido em que Heródoto o foi.
É um romancista, um jornalista e,
sobretudo, um agitador cultural,
que sempre se colocou numa posição anticonservadora, polêmica,
individualista, sincera, íntegra.
Difícil, senão inútil, catalogá-lo
em termos de comparação com os
grandes autores norte-americanos do século 20. Não se inclui naquela geração considerada perdida, a qual pertenceram Faulkner,
Hemingway, Henry Miller e Scott
Fitzgerald. Tampouco na turma
que se seguiu, mais ou menos
maldita ou totalmente maldita,
como Tennessee Williams, Norman Mailer, J. D. Salinger, Truman Capote, para citar os mais
óbvios.
Ele é uma ilha não apenas na literatura norte-americana mas na
literatura do nosso tempo. Isolou-se intelectual e fisicamente do território e dos valores domésticos
dos Estados Unidos, fixou-se na
Europa, com quase exclusividade
na Itália (Nápoles, Rapalo), sem
seguir os passos de outros norte-americanos, como Ezra Pound
(poesia) e Orson Welles (cinema),
que se radicaram mais ao leste, o
mesmo "leste" que foi aconselhado a Xerxes há 2.500 anos.
Como pôde um escritor nascido
nos começos da década de 20, na
Academia de West Point (novamente o "west"), criado e educado
em Washington, entrar no cotidiano do mundo antigo no momento em que este mundo vivia,
sem saber, um dos estágios mais
importantes e geradores da civilização humana? Evidente que
houve pesquisa e há vasta e variada literatura a respeito, mas uma
literatura cheia de buracos, vazios, enigmas, contradições, arapucas técnicas e pontuais para a
abordagem crítica e isenta.
Não faz muito, por ocasião da
entrega do Prêmio da Latinidade
a Pietro Citati pela sua biografia
de Proust, ouvi dele em Paris a dificuldade que estava encontrando
em como fazer seu livro seguinte,
a biografia de Homero. Teria
realmente existido um Homero
que escreveu dois poemas fundamentais da humanidade? Ou seria a soma de seis ou oito autores
diferentes e não necessariamente
contemporâneos?
Gore Vidal não teve a intenção
de escrever a história que começava a ser historicizada. Ele se marcou no cenário e na literatura do
nosso tempo como uma voz solitária e contestatória, apesar de
não clamar no deserto. Perseguido pela onda do macartismo dos
anos 50, que não foi um movimento reacionário exclusivo dos
Estados Unidos, ele conquistou a
platéia internacional com seus
romances e artigos de jornal. Chegou a fazer ponta num filme de
Fellini ("Roma") em que, entrevistado pelo diretor, divide a humanidade entre aqueles que gostam e não gostam de Roma, a capital italiana do Império Romano
funcionando como símbolo e núcleo do "leste", que, ao tempo de
Xerxes e dos grandes impérios do
Oriente e do Médio Oriente, seriam savanas selvagens, sem esplendor e sem futuro.
"Criação" é antes de tudo um
bom romance escrito por um profissional do ramo. Não vem ao caso discutir se Gore Vidal é um crítico exaltado do atual presidente
norte-americano, se apóia ou não
a atual política externa da maioria dos países do "leste" em relação ao velho oeste, não o oeste dos
"caubóis" e das diligências, mas o
oeste do Vietnã, do Afeganistão e
do Iraque invadidos pelos "caubóis" e pelas diligências de um arsenal tecnológico que Xerxes, mexendo-se ou não em sua rede, mal
poderia imaginar.
(Apresentação para a nova edição do livro de Gore Vidal pela
Nova Fronteira, em comemoração dos 40 anos da editora)
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