São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

A criação de Gore Vidal

Cerca de 500 anos antes da hegemonia do Império Romano e 445 anos antes de Cristo, alguém disse a Xerxes que o futuro da humanidade estava a "leste" da civilização até então conhecida. Em termos comparativos, seria o mesmo que alguém tentar convencer o Pentágono de que o futuro da civilização estaria no pólo Ártico ou, como emergência topográfica, no pólo Antártico.
Cito ao acaso um trecho quase insignificante de "Criação", o grande em todos os sentidos (pelo volume, pelo conteúdo e pela linguagem) romance histórico de Gore Vidal, publicado em 1981, quando o autor atingia sua plenitude aos 56 anos de idade.
Penetrando num gênero recorrente da literatura universal, o romance com fundo pesquisado, buscado e interpretado na história oficial ou oficiosa, a obra de Gore Vidal é um dos momentos literários que podem ser considerados monumentos, na mesma prateleira dos clássicos de Alexandre Dumas, André Maurois, Henri Troyat, Emil Ludwig e Stefan Zweig.
Discute-se a validade da história assim romanceada. No século 19, apesar do esforço quase arqueológico de Ernest Renan para escrever sua clássica vida de Jesus, tanto a Igreja Católica como as demais igrejas nascidas do cristianismo, foram consensuais em condenar a obra, hoje considerada um dos pontos culminantes da literatura francesa e universal.
O historiador convencional e o crítico profissional sentem arrepios na pele e na consciência quando encontram, como neste livro de Gore Vidal, detalhes marginais como "Xerxes sorriu e mexeu-se na rede". Ou então, "Danton cerrou as sobrancelhas e encarou Robespierre com desprezo" (Stefan Zweig). Qual a fonte confiável para estabelecer que Xerxes estava na rede e que Danton olhou com desprezo para o homem que o mandaria para a guilhotina?
Gore Vidal não é historiador, no sentido em que Heródoto o foi. É um romancista, um jornalista e, sobretudo, um agitador cultural, que sempre se colocou numa posição anticonservadora, polêmica, individualista, sincera, íntegra.
Difícil, senão inútil, catalogá-lo em termos de comparação com os grandes autores norte-americanos do século 20. Não se inclui naquela geração considerada perdida, a qual pertenceram Faulkner, Hemingway, Henry Miller e Scott Fitzgerald. Tampouco na turma que se seguiu, mais ou menos maldita ou totalmente maldita, como Tennessee Williams, Norman Mailer, J. D. Salinger, Truman Capote, para citar os mais óbvios.
Ele é uma ilha não apenas na literatura norte-americana mas na literatura do nosso tempo. Isolou-se intelectual e fisicamente do território e dos valores domésticos dos Estados Unidos, fixou-se na Europa, com quase exclusividade na Itália (Nápoles, Rapalo), sem seguir os passos de outros norte-americanos, como Ezra Pound (poesia) e Orson Welles (cinema), que se radicaram mais ao leste, o mesmo "leste" que foi aconselhado a Xerxes há 2.500 anos.
Como pôde um escritor nascido nos começos da década de 20, na Academia de West Point (novamente o "west"), criado e educado em Washington, entrar no cotidiano do mundo antigo no momento em que este mundo vivia, sem saber, um dos estágios mais importantes e geradores da civilização humana? Evidente que houve pesquisa e há vasta e variada literatura a respeito, mas uma literatura cheia de buracos, vazios, enigmas, contradições, arapucas técnicas e pontuais para a abordagem crítica e isenta.
Não faz muito, por ocasião da entrega do Prêmio da Latinidade a Pietro Citati pela sua biografia de Proust, ouvi dele em Paris a dificuldade que estava encontrando em como fazer seu livro seguinte, a biografia de Homero. Teria realmente existido um Homero que escreveu dois poemas fundamentais da humanidade? Ou seria a soma de seis ou oito autores diferentes e não necessariamente contemporâneos?
Gore Vidal não teve a intenção de escrever a história que começava a ser historicizada. Ele se marcou no cenário e na literatura do nosso tempo como uma voz solitária e contestatória, apesar de não clamar no deserto. Perseguido pela onda do macartismo dos anos 50, que não foi um movimento reacionário exclusivo dos Estados Unidos, ele conquistou a platéia internacional com seus romances e artigos de jornal. Chegou a fazer ponta num filme de Fellini ("Roma") em que, entrevistado pelo diretor, divide a humanidade entre aqueles que gostam e não gostam de Roma, a capital italiana do Império Romano funcionando como símbolo e núcleo do "leste", que, ao tempo de Xerxes e dos grandes impérios do Oriente e do Médio Oriente, seriam savanas selvagens, sem esplendor e sem futuro.
"Criação" é antes de tudo um bom romance escrito por um profissional do ramo. Não vem ao caso discutir se Gore Vidal é um crítico exaltado do atual presidente norte-americano, se apóia ou não a atual política externa da maioria dos países do "leste" em relação ao velho oeste, não o oeste dos "caubóis" e das diligências, mas o oeste do Vietnã, do Afeganistão e do Iraque invadidos pelos "caubóis" e pelas diligências de um arsenal tecnológico que Xerxes, mexendo-se ou não em sua rede, mal poderia imaginar.
(Apresentação para a nova edição do livro de Gore Vidal pela Nova Fronteira, em comemoração dos 40 anos da editora)


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