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MARCELO COELHO
A gravidade das imagens
Os diálogos são fracos, os atores, mais ainda. Há uma cena de sexo que é pura breguice no estilo da década de 70. O desfecho
do filme com uma bandeira de Israel tremulando discretamente
ao fundo está no limite do propagandístico. Mas "Kippur - O Dia
do Perdão", em cartaz no Cineclube DirectTV, merece ser visto
mesmo assim.
Imagino que não seja fácil fazer um filme totalmente pacifista em
Israel hoje em dia. O diretor, Amos Gitai, que já havia traçado
um retrato terrível das comunidades ultra-ortodoxas em seu
país, provavelmente sabia que estava comprando novas brigas ao
narrar, nesse filme autobiográfico, suas próprias experiências no
Exército israelense em 1973.
Egito e Síria invadiam de surpresa o território de Israel. Não
há em "Kippur" cenas de batalha
clássicas embora as câmeras nunca se afastem muito do cenário de
guerra.
Toda a ação do filme se concentra no trabalho de uma equipe
médica de resgate. O que vemos, o
tempo inteiro, são soldados feridos e mortos e o empenho, sem
dúvida heróico, dos que descem
de helicóptero em pleno campo de
batalha para salvar vidas, e não
para matar o inimigo.
Claro que isso poderia resultar,
com um belo fundo musical e cenas em câmera lenta, num espetáculo da mais indecente pieguice
hollywoodiana. O que há de interessante em "Kippur" é que suas
cenas são filmadas de forma quase estática, como que numa espécie de paralisia moral. Cada sequência demora um pouco mais
do que deveria; a câmera insiste,
recusa-se em passar para outro
assunto. Não quer que o espectador se esqueça do que está vendo.
Não se trata de contar uma história da forma mais rápida, econômica e empolgante possível. A
narrativa não existe, ou melhor,
desaparece diante da gravidade
imóvel, absoluta, do sofrimento
específico de cada homem ferido
ou morto.
Fundo musical, cortes rápidos,
agilidade narrativa, câmera trepidante: tudo isso parece pura frivolidade diante do modo como
Amos Gitai filmou a guerra. Se
existe heroísmo nos personagens,
não há nada de épico em tudo
aquilo. Estão todos perdidos no
meio da batalha, e, como o diretor elimina qualquer senso de
narrativa, qualquer sentido na
sucessão dos episódios, as atividades dos personagens assumem o
caráter de uma rotina estafante,
de um trabalho especialmente penoso e ingrato.
Há uma cena terrível, e demoradíssima, em que o médico e seus
auxiliares tentam tirar um ferido
de uma vala, em meio à chuva.
Estão todos atolados na lama; a
maca escorrega, não há como levar o ferido até o helicóptero... E,
quando esse episódio finalmente
termina e o helicóptero levanta
vôo, uma tomada panorâmica revela ao espectador a dimensão
completa da situação.
Lembro-me de ter gostado muito de "A Lista de Schindler" e de
ter ficado muito surpreso quando
ouvi pela primeira vez a opinião
de que seria imoral, e até obsceno,
encenar os horrores do nazismo
daquela maneira. Nada mais indesculpável, dizem os críticos de
Spielberg, do que obter efeitos catárticos a partir da representação
do mal absoluto e tornar visível,
segundo padrões do entretenimento de massas, a catástrofe
inominável do genocídio. Há extensas e ricas discussões a respeito
do tema, confira-se o volume
"Catástrofe e Representação", da
editora Escuta.
A polêmica reverbera ainda
quando se condena este ou aquele
filme por ter promovido uma "espetacularização da violência". Eis
uma expressão que já se tornou
quase um clichê crítico, sendo
aplicada, com razão, a tudo
quanto é filme americano de propaganda belicista.
Entre espetacularização e denúncia, entre obscenidade e representação, entre o que deriva
da necessidade de apontar o sofrimento humano e o que é pura exploração sensacionalista desse sofrimento, há, contudo, diferenças
consideráveis, e muitos filmes parecem, atualmente, empenhados
justamente em encontrar soluções próprias para esse problema.
"O Pianista", de Polanski, poderia em tese atrair muitas das críticas feitas a Spielberg: nenhuma
representação da violência nazista estaria à altura da enormidade
do que ocorreu. Polanski parece
ter conseguido, entretanto, responder de forma original a essa
crítica. Em vários momentos do
filme, é exatamente esse interdito,
essa impossibilidade de representar o horror, que está sendo tematizada.
Wladislaw Szpilman, o protagonista do filme, assiste a toda a
sua família ser jogada no trem
que a levará ao campo de extermínio. A porta do vagão se cerra
bruscamente. Szpilman nunca
mais verá seus pais e seus irmãos.
E, desse modo, o próprio filme parece afirmar que o que aconteceu
no campo de extermínio não será
mostrado ao espectador, está
além de qualquer filmagem.
Há outras cenas de extrema
violência (hesito em descrevê-las)
que Polanski também evita espetacularizar. Assim, quando Szpilman presencia o assassinato de
um velhinho em cadeira de rodas,
tudo é filmado de longe, da janela
do apartamento em frente, numa
situação que, ao mesmo tempo,
acentua a impotência do protagonista e a impossibilidade moral
e estética de mostrar mais de perto o que acontece.
"Kippur" não está às voltas com
a atrocidade nazista, mas também procura respostas para a
questão de como representar o
"irrepresentável". A lentidão das
cenas, o sofrimento em que estão
imersos os personagens, tudo o
que há no filme de fatigante parece ser efeito de um olhar propositadamente fixo; fixo, mas não fascinado. E o constante som dos helicópteros, que atravessa o filme inteiro, quase acrescenta um novo véu, uma nova obscuridade,
um interdito sonoro para tudo o
que está sendo mostrado. Não se
ouve nada do que os personagens
dizem e é como se o diretor sugerisse com isso que nenhum comentário, nenhuma justificativa,
nenhum discurso vem ao caso
diante do que está a ocorrer.
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