São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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CRÍTICA

Arqueologia de um país que desapareceu

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

É um programa que parece ser de outro tempo e de outro lugar e, ainda assim, está lá todas as terças-feiras, às 22h, na Cultura. Na contramão da "nova" Cultura, que anda se aproximando do pior em exibição na TV comercial e se afastando muito do que poderia ser um modelo de TV pública, o "Sr. Brasil" se mantém curioso, interessante e algo tocante.
O formato mantém-se praticamente inalterado desde que Boldrin estreou na TV Globo, no início dos anos 80, no "Som Brasil", números musicais de produção mínima com convidados, histórias e anedotas contadas pelo apresentador e um ar inequívoco de nostalgia.
Vinte e cinco anos atrás, o programa já era saudoso de um Brasil ao mesmo tempo mais ingênuo e mais inteiro, idealizado (sem dúvida), mas com algum lastro histórico que não o da memória. Hoje, é quase que uma peça arqueológica, a partir da qual se pode tentar redesenhar esse país imaginário de quase três décadas atrás. Daí o interesse.
Segundo esse mapa, parte-se do campo, da origem rural (caipira), para uma concepção de cultura brasileira nacionalista e de certa extração popular; da proximidade com a natureza às cidades. As diferenças regionais são, ao mesmo tempo, importantes - na medida em que exprimem diversidade- e irrelevantes -porque haveria uma identidade maior, nacional, à qual os diferentes estilos e sotaques estariam subordinados.
Assim, num mesmo programa, Boldrin recebe músicos de extração muito diversa, representantes de tradições que vão da música caipira de viola ao tropicalismo amargo de Jards Macalé, ao "clubedeesquinismo" tardio e maduro de uma cantora de Belo Horizonte.
Rolando Boldrin, ele mesmo, conta uma história do caboclo da sua terra ou acompanha Macalé numa reminiscência sobre o samba-de-breque.
O cenário combina o despojamento ao artesanato bem-arrumado, colorido, que se convencionou associar a esse Brasil orgulhoso de si. A atmosfera à vontade evoca a idéia de simpatia irresistível que uma certa parte dos brasileiros imagina como seu patrimônio mais caro.
Nada é novo, tudo é mais ou menos obscuro e, por isso mesmo, tem muito mais frescor. Daí o interesse e daí a comoção. Há uma certa atitude desafiadora e potente nesse projeto de insistir nesse Brasil de "raízes", de alguma possibilidade que passe ao largo do mercado, do reconhecimento de uma nacionalidade que se faz em alguma medida a partir de destinos comuns do cidadão comum.
É como se a nostalgia pudesse se constituir num foco de resistência à modernidade. Não pode, mas não importa nem deveria importar, na verdade - para o "Sr. Brasil", seus convidados e para o pequeno auditório que acompanha a gravação do programa. A virtualidade basta e isso já está bem.


@ - biabramo.tv@uol.com. br


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