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FERREIRA GULLAR
Empresários bisonhos
Queimada a sede da UNE
no dia 1º de abril de l964,
instaurada a ditadura militar, o
Centro Popular de Cultura tornou-se inviável. Não dava mais
para fazer teatro-relâmpago nos
sindicatos, nas praças e nas favelas. Por isso, pensamos em nos
transformar num grupo teatral
normal, com bilheteria, palco e
platéia. Foi aí que nos lembramos
do espaço, no shopping center da
rua Siqueira Campos, onde o
Teatro de Arena de São Paulo havia se apresentado cinco anos antes, e fomos falar com o senador
Arnon de Mello, dono do shopping. Alugado o espaço, montado
o pequeno teatro, começamos
nossas atividades com o show
"Opinião", que daria nome ao
teatro.
Mas nós éramos comunistas,
portanto anticapitalistas e não
nos sentíamos muito à vontade
em ganhar dinheiro com o trabalho alheio. É certo que o fato de
estarmos ali trabalhando pela revolução aliviava a culpa, mas não
inteiramente. Por isso mesmo, fora Denoy e Pichín, que cuidavam
da administração, nenhum de
nós recebia nada, a não ser direito autoral, quando era o caso.
Estávamos condenados à falência. Eis um exemplo: quando
montamos "Liberdade Liberdade", oferecemos aos atores porcentagens em lugar de salário fixo, mas Paulo Autran não aceitou, queria um valor fixo, com o
que concordamos. A peça estreou,
começou a lotar e quem recebia
porcentagem ganhava mais a cada semana. Paulo, naturalmente,
considerou injusto receber menos
que os outros. Resumindo, rasgamos o contrato anterior e passamos a lhe pagar percentagem. Era
justo, mas nada capitalista.
O show "Opinião" foi um sucesso de bilheteria, mas o que sobrava para pagarmos o aluguel do
teatro, manutenção e impostos
não era muito. Depois da temporada no Rio, o show foi para São
Paulo, as despesas aumentaram.
Certa tarde, fui procurado, na Redação do jornal, por Zé Keti, que
ali chegou de chapéu, paletó de
veludo e colete, apesar do calor
que fazia. Queria meu apoio para
que o grupo aumentasse sua porcentagem no show.
Por acaso, na noite anterior, tínhamos nos reunido e constatado
que, descontadas as porcentagens
pagas aos participantes do espetáculo, tudo o que sobrava para
cobrir as despesas era 8%. Estávamos no vermelho.
- Você ganha 9%, não é, Zé
Keti?
- O que é muito pouco. Acho
que uns 11% já estava bom.
- Tenho uma proposta melhor, falei. A gente fica com teus
9% e você assume o show.
- Como?! Está brincando.
- Não estou, não. Se topa, não
preciso nem falar com meus companheiros.
Ele riu sem graça, despediu-se e
foi embora. Dessa vez, agi como
capitalista.
"Liberdade Liberdade" despertara a fúria dos milicos. Não obstante, por exaltar a liberdade, criticava também o caráter autoritário do regime socialista. Terminado o espetáculo de estréia, um
companheiro do partido, intelectual de renome, levantou a voz
em protesto, considerando um
absurdo que o Grupo Opinião fizesse o jogo dos anticomunistas.
Tratamos de acalmá-lo, mas ele,
inconformado, exigiu que a questão fosse levada ao comitê cultural do partido. Lá, ele foi fragorosamente derrotado; deprimido,
trancou-se em casa, injuriado,
por mais de uma semana. Mais
revoltado do que ele contra a peça, só mesmo um grupo paramilitar que tentou provocar baderna
durante o espetáculo e foi repelido pela platéia: os berros de
"abaixo o comunismo" foram
abafados pelas palmas do público, que gritava "liberdade, liberdade!".
Com alguns meses de inaugurado o teatro, Teresa Aragão, apaixonada pela música popular, especialmente a das escolas de samba, sugeriu fazer, todas as segundas-feiras, a apresentação de
compositores, cantores, passistas
e ritmistas sob o nome de "A Fina
Flor do Samba", primeiro passo
para mostrar à zona sul do Rio a
riqueza musical dos subúrbios cariocas. Naquelas noites de segunda-feira, muito sambista se revelou, inclusive Martinho da Vila,
que era então sargento do Exército. Outra revelação que encantou
a platéia foi a Nêga Pelé, de corpo
escultural e ginga elegante de passista. Seu êxito foi tanto que, pouco depois, a contrataram para
dançar no Golden Room do Copacabana Palace. Quando ela
reapareceu no Opinião, meses
mais tarde, já não tinha o mesmo
corpinho elegante: passara a comer bem e engordara. Mas seus
companheiros de escola estavam
exultantes:
- Agora é que ela está bonita,
de pernas grossas, forte, com muita saúde!
Gostar de mulher magra já era,
naquela época, coisa da zona sul.
Caso engraçado foi do ator Fregolente, que fazia, na peça "Se
Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come", o papel do coronel
Honorato. Dera para beber antes
do espetáculo e passara a errar as
falas. Já duas noites consecutivas,
em vez de dizer "Comi a mulher
de Brás das Flores", dizia: "Comi
o Brás das Flores", o que comprometia o personagem. Encarregado de conversar com ele, chamei-o à parte e, cuidadosamente, expus-lhe o problema.
- Deixa para tomar teus uísques depois do espetáculo, está
bem, amigão?
Fregolente olhou-me nos olhos,
seu rosto foi ficando vermelho de
raiva e começou a gritar:
-Kremlin, Kremlin! Os comunistas querem me proibir de beber!
Passado o susto, comecei a rir. E
ele continuou, todas as noites, na
peça, a dizer que comeu o Brás
das Flores.
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