São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2008

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MARCELO COELHO

A um político, muchas gracias

Não é que eu recebo, num dia destes, um brinde de um vereador? O chaveiro era "para mim"

AMIGO ELEITOR. Prezado concidadão. Você, que, como eu, ama a nossa cidade. Sei que as eleições para prefeito e vereador ainda estão longe. E que talvez você esteja decepcionado com o comportamento de nossa classe política. Com a corrupção, com a mentira, com o descaso...
Tenho uma boa notícia para você. Finalmente, encontrei um político que pensa nas nossas necessidades. E cuida com desvelo de nossos interesses. Explico.
É que eu comprei um carro recentemente. Não foi simples. Com o aquecimento da economia, a espera por novos veículos tem sido grande.
As concessionárias já não fazem de tudo para atrair os seus clientes.
Foram-se embora os brindes, os agradinhos, os descontos, os estofamentos de couro, a instalação grátis do "alarme automotivo". Ganhei um tapete de borracha, e olhe lá.
Aí é que entra na história o político para o qual solicito um minuto de sua atenção.
Não é que eu recebo, num destes dias, um brinde desse vereador paulistano? Uma coisa útil, bem pensada e, embora de valor insignificante, admirável no seu gênero.
Era um chaveiro. Mas não tinha o retrato do vereador. Tinha a forma exata de uma placa de carro. E com as letras e o número do carro que eu acabei de comprar!
Adeus, penduricalhos sem sentido: pedras brasileiras, petequinhas coloridas, coraçõezinhos fofos de borracha, escudos do Corinthians, recordações de Teresópolis.
Foi inventado o chaveiro racional, o chaveiro certo, o chaveiro único para o seu veículo: aquele que tem a placa insubstituível dele mesmo. Agradeço a lembrança. Mas fiquei um pouco preocupado.
Como ele sabia a placa do meu carro? Está ligado às revendedoras?
Ao mundo tentacular dos despachantes? Terá conhecidos no Detran? O que pensa sobre multas e congestionamentos?
O fato é que, sem ironia, me senti pessoalmente agraciado com a iniciativa. O chaveiro era "para mim". Já é um progresso. Continuo a fazer parte de uma massa indistinta de votantes. Tenho, ao menos, meu próprio número.
Era tempo de aperfeiçoarem o velho marketing político dos santinhos e do horário eleitoral. Tudo ficou mais fácil, hoje em dia, com a informática.
Quem já encomendou livros na internet sabe como é: eles têm o histórico das suas preferências e compras anteriores. "Alô, Marcelo! Temos recomendações para você." Peço um livro, e a tela informa que quem pediu esse livro também gostou daquele outro.
A disputa entre Hillary e Obama, para quem andou acompanhando, seguiu uma lógica parecida: o "eleitorado em geral" já deixou de existir.
Os estrategistas dividem-no em grupos cada vez menores: as aposentadas do Wisconsin, os latinos de 20 anos em Nova Jersey, os anabatistas do Minnesota.
Pontos fracos no mapa eleitoral serão "trabalhados" pelo candidato, que depois de eleito irá equilibrar-se como pode, distribuindo seus chaveirinhos (e chaveirões), imagino que nas modalidades "silver", "gold" e "platinum".
Para quem encara o marketing eleitoral com naturalidade, vale a pena alugar o documentário (lá vou eu com minha mania de documentários) intitulado "Crise É o Nosso Negócio", de Rachel Boyd.
O filme acompanha de perto (mais de perto, impossível) a campanha presidencial boliviana de 2002. Evo Morales já concorria naquele ano, mas perdeu para Gonzalo Sánchez de Losada, o "Goni", um azarão completo.
Era privatizante e tinha até sotaque americano. Mas contratou a empresa de James Carville, marqueteiro de Bill Clinton. Seguimos cada reunião dos especialistas com o candidato. É instrutivo.
E assustador? Em parte, sim. Carville ri como um cientista louco de história em quadrinhos. Predomina um máximo de insensibilidade política, ao lado de um máximo de tecnologia eleitoral. Mas logo vemos que o marketing sozinho não faz milagres.
Um candidato pode vencer com a melhor campanha e perder de si próprio, com ajuda daqueles a quem derrotou -ainda mais quando há um Evo Morales, e muita miséria, por perto. Nem todos, afinal, contentam-se com chaveirinhos -ainda mais se não têm carros para dirigir.


coelhofsp@uol.com.br

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