São Paulo, sábado, 14 de maio de 2011

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CRÍTICA POESIA

Tradução de "Odisseia" peca na sonoridade

Nova versão brasileira do épico de Homero tem como destaque o distanciamento da obviedade e do banal

ANTONIO MEDINA RODRIGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

No Brasil, as traduções de Homero puxam pelo tempo ou pelo espaço. Umas com ânimo, outras com informações. Tempo quer ritmo, cadência, quer vida. Espaço quer palavra, brilho, prestígio, abstração.
Isso desde o Brasil Colônia, pelo menos. Em "Os Lusíadas", o espaço é lero-lero para chegar-se aos páramos de "Inês de Castro", "Adamastor", "Ilha dos Amores" etc., onde os deuses são dolorosamente lentos, quase uns manequins. Não são os deuses de Homero porque lhes sobra pouco para ser e agir.
Falta-lhes o oceano do ritmo. São fotografia. Esse gosto do estático vai à literatura para estagná-la. Pela reflexão, pelo abstratismo, que, com breque de mão puxado, congela o ritmo real.
Tal é possível crítica ao bom trabalho do tradutor Trajano Vieira (Unicamp).
Refletir? Em Homero não há disso. Nele tudo vem do pré-casamento entre coisas e palavras, um "a priori" ético.
Nada em Homero para. As partículas vêm integradas, ou preparadas para sair, quando for o caso. Cantores de cordel nordestino nunca se esqueceram de algo assim.
O que fez Vieira, investigador da língua e literatura grega antiga? Qual sua via?
Esta: ele prefere o modernismo e quer a palavra em si, que é mito literário de origens pouco literárias, e que alimentou polêmicas estéreis, por mais de um século.
Poucas coisas separam mais o social de si mesmo como os glossários de prestígio. Isso atravessou o modernismo, não obstante as rebeldices, e sempre de fachada.
A paixão pela palavra longa e prestigiosa sufocou as pequeninas palavras quase expletivas que fazem o ritmo de Homero, e o protegem do darwinismo silábico.
Assim, "multiversátil" pede um socorro das partículas que expulsa do verso, porém lhes dá pouco espaço para retornarem ("esperto" desafogaria a frase com a vantagem de não chamar atenção): "O homem multiversátil, Musa, canta, as muitas" / "Errâncias, destruída Troia, pólis sacra," / "As muitas urbes que mirou e mente de homens" / "Que escrutinou. As muitas dores amargadas" / "No mar a fim de preservar o próprio alento" / "E a volta dos sócios. Mas seu sobreempenho não" / "Os preservou: pueris, a insensatez vitima-os,"/ "Pois Hélio hiperônio lhes recusa o dia" / "Da volta, morto o gado seu que eles comeram."
E assim isto se espalha em destruída, errâncias, escrutinou, amargadas, sobreempenho, insensatez.

PROSA E POESIA
É tudo mais longo do que devia ser. Não cabe nas linhas. Digo linhas porque quase não há versos onde se abdica do ritmo. Mas, quando tal não atrapalha, a tradução de Vieira, lenta e paciente, ensina-nos Homero.
Vieira acompanha certo desmonte de formas do final do 19, e começo do 20, em que se ajuntam prosa e poesia qualificadas (Sousândrade, Cesário Verde, João Cabral, Haroldo e Augusto de Campos e outros).
Mas, nessa junção, a prosa nem sempre acaba se casando à poesia. Exemplo: "Os preservou: pueris, a insensatez vitima-os". Isso está afastado do espírito da Odisseia. Trajano Vieira consegue e se afasta sempre do banal.
Hoje, para entender Homero, é preciso vê-lo sem obviedades. Isso o tradutor mostrou. Mas e o sentimento do texto? Já sentir é outra coisa. Que exige dançar no que se faz. Uma dança qualquer, aliás.
Desde que se dance de fato, e não se pense em dançar.
Isso Trajano Vieira nos fica devendo. Talvez por respeito à métrica. Ora, essas coisas não decidem como o ouvido, que é a prova dos noves.


ANTONIO MEDINA RODRIGUES é professor de língua e literatura grega da USP.

ODISSEIA
AUTOR Homero
EDITORA 34
TRADUÇÃO Trajano Vieira
QUANTO R$ 79 (816 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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