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CRÍTICA POESIA
Tradução de "Odisseia" peca na sonoridade
Nova versão brasileira do épico de Homero tem como destaque o distanciamento da obviedade e do banal
ANTONIO MEDINA RODRIGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA
No Brasil, as traduções de
Homero puxam pelo tempo
ou pelo espaço. Umas com
ânimo, outras com informações. Tempo quer ritmo, cadência, quer vida. Espaço
quer palavra, brilho, prestígio, abstração.
Isso desde o Brasil Colônia, pelo menos. Em "Os Lusíadas", o espaço é lero-lero
para chegar-se aos páramos
de "Inês de Castro", "Adamastor", "Ilha dos Amores"
etc., onde os deuses são dolorosamente lentos, quase uns
manequins. Não são os deuses de Homero porque lhes
sobra pouco para ser e agir.
Falta-lhes o oceano do ritmo. São fotografia. Esse gosto do estático vai à literatura
para estagná-la. Pela reflexão, pelo abstratismo, que,
com breque de mão puxado,
congela o ritmo real.
Tal é possível crítica ao
bom trabalho do tradutor
Trajano Vieira (Unicamp).
Refletir? Em Homero não há
disso. Nele tudo vem do pré-casamento entre coisas e palavras, um "a priori" ético.
Nada em Homero para. As
partículas vêm integradas,
ou preparadas para sair,
quando for o caso. Cantores
de cordel nordestino nunca
se esqueceram de algo assim.
O que fez Vieira, investigador
da língua e literatura grega
antiga? Qual sua via?
Esta: ele prefere o modernismo e quer a palavra em si,
que é mito literário de origens pouco literárias, e que
alimentou polêmicas estéreis, por mais de um século.
Poucas coisas separam
mais o social de si mesmo como os glossários de prestígio.
Isso atravessou o modernismo, não obstante as rebeldices, e sempre de fachada.
A paixão pela palavra longa e prestigiosa sufocou as
pequeninas palavras quase
expletivas que fazem o ritmo
de Homero, e o protegem do
darwinismo silábico.
Assim, "multiversátil" pede um socorro das partículas
que expulsa do verso, porém
lhes dá pouco espaço para retornarem ("esperto" desafogaria a frase com a vantagem
de não chamar atenção):
"O homem multiversátil,
Musa, canta, as muitas" /
"Errâncias, destruída Troia,
pólis sacra," / "As muitas urbes que mirou e mente de homens" / "Que escrutinou. As
muitas dores amargadas" /
"No mar a fim de preservar o
próprio alento" / "E a volta
dos sócios. Mas seu sobreempenho não" / "Os preservou:
pueris, a insensatez vitima-os,"/ "Pois Hélio hiperônio
lhes recusa o dia" / "Da volta,
morto o gado seu que eles comeram."
E assim isto se espalha em
destruída, errâncias, escrutinou, amargadas, sobreempenho, insensatez.
PROSA E POESIA
É tudo mais longo do que
devia ser. Não cabe nas linhas. Digo linhas porque
quase não há versos onde se
abdica do ritmo. Mas, quando tal não atrapalha, a tradução de Vieira, lenta e paciente, ensina-nos Homero.
Vieira acompanha certo
desmonte de formas do final
do 19, e começo do 20, em
que se ajuntam prosa e poesia qualificadas (Sousândrade, Cesário Verde, João Cabral, Haroldo e Augusto de
Campos e outros).
Mas, nessa junção, a prosa
nem sempre acaba se casando à poesia. Exemplo: "Os
preservou: pueris, a insensatez vitima-os". Isso está afastado do espírito da Odisseia.
Trajano Vieira consegue e
se afasta sempre do banal.
Hoje, para entender Homero,
é preciso vê-lo sem obviedades. Isso o tradutor mostrou.
Mas e o sentimento do texto?
Já sentir é outra coisa. Que
exige dançar no que se faz.
Uma dança qualquer, aliás.
Desde que se dance de fato, e não se pense em dançar.
Isso Trajano Vieira nos fica
devendo. Talvez por respeito
à métrica. Ora, essas coisas
não decidem como o ouvido,
que é a prova dos noves.
ANTONIO MEDINA RODRIGUES é professor
de língua e literatura grega da USP.
ODISSEIA
AUTOR Homero
EDITORA 34
TRADUÇÃO Trajano Vieira
QUANTO R$ 79 (816 págs.)
AVALIAÇÃO bom
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