São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008

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crítica

Autor se debate entre mundo real e ficcional

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em uma passagem de "Elizabeth Costello", a protagonista afirma: "Minha profissão não é acreditar, é só escrever".
Pouco depois, a frase é ajustada: "Sou escritora, uma mercadora de ficções. Tenho apenas crenças provisórias: crenças fixas me atrapalhariam".
Desde que surgiu alguns anos atrás, a personagem, que vem freqüentando de modo recorrente os textos de J.M. Coetzee e é tão parecida com o seu criador, marcou uma virada significativa na produção do autor, entre outras razões por ficcionalizar uma espécie de ética da criação literária que borra limites e renova a validade de questões há muito discutidas pelos teóricos da narrativa.
Com "Diário de um Ano Ruim", que chega agora às livrarias, ele dá um passo adiante. Elizabeth Costello some e, em seu lugar, entra em cena o escritor que é chamado por Anya, a linda moça que modifica seu cotidiano, de Senõr C (e a inicial do próprio sobrenome é apenas uma das inúmeras referências autobiográficas, ainda que outras, para confundir o jogo, não se ajustem perfeitamente).
Cabe a ela digitar as "Opiniões Fortes" (o livro homenageia Vladimir Nabokov de diversas maneiras) que lemos na parte superior de cada página ao longo de toda a obra. Na parte inferior, às vezes dividida em duas, às vezes solitária, acompanhamos a descrição do impacto e da influência que ela exerce na vida dele e vice-versa.
Com o artifício, temos, de um lado, uma amostra do que seriam "crenças fixas" de um escritor (e ele trata de tudo, da infâmia de Guantânamo aos sistemas de navegação, da pedofilia às religiões) e, de outro, uma lição prática de como a ficção pode desestabilizá-las, torná-las provisórias, relativas.
Coetzee parece se debater entre a necessidade de falar sobre as coisas de um mundo que obviamente não funciona direito e o seu papel de "mercador de ficções", que lhe dá a prerrogativa de apenas escrever. E joga suas fichas.
Daí a compreensão que o Señor C adquire já no final do volume de que a força de um trecho dos "Irmãos Karamazov", de Dostoiévski, venha muito mais do tom e da forma do que ali é dito do que das idéias apresentadas: "A resposta não tem nada a ver com ética nem com política, e tudo a ver com retórica (...). É a voz de Ivã, como concebida por Dostoiévski, não sua argumentação, que me arrebata". Como ele percebe ali, é esse "o padrão ao qual todo romancista sério deve aspirar".


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP


DIÁRIO DE UM ANO RUIM
Autor: J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (248 págs.)
Avaliação: ótimo



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