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crítica
Autor se debate entre mundo real e ficcional
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em uma passagem de
"Elizabeth Costello",
a protagonista afirma: "Minha profissão não é
acreditar, é só escrever".
Pouco depois, a frase é ajustada: "Sou escritora, uma
mercadora de ficções. Tenho
apenas crenças provisórias:
crenças fixas me atrapalhariam".
Desde que surgiu alguns
anos atrás, a personagem,
que vem freqüentando de
modo recorrente os textos de
J.M. Coetzee e é tão parecida
com o seu criador, marcou
uma virada significativa na
produção do autor, entre outras razões por ficcionalizar
uma espécie de ética da criação literária que borra limites e renova a validade de
questões há muito discutidas
pelos teóricos da narrativa.
Com "Diário de um Ano
Ruim", que chega agora às livrarias, ele dá um passo
adiante. Elizabeth Costello
some e, em seu lugar, entra
em cena o escritor que é chamado por Anya, a linda moça
que modifica seu cotidiano,
de Senõr C (e a inicial do próprio sobrenome é apenas
uma das inúmeras referências autobiográficas, ainda
que outras, para confundir o
jogo, não se ajustem perfeitamente).
Cabe a ela digitar as "Opiniões Fortes" (o livro homenageia Vladimir Nabokov de
diversas maneiras) que lemos na parte superior de cada página ao longo de toda a
obra. Na parte inferior, às vezes dividida em duas, às vezes solitária, acompanhamos
a descrição do impacto e da
influência que ela exerce na
vida dele e vice-versa.
Com o artifício, temos, de
um lado, uma amostra do
que seriam "crenças fixas" de
um escritor (e ele trata de tudo, da infâmia de Guantânamo aos sistemas de navegação, da pedofilia às religiões)
e, de outro, uma lição prática
de como a ficção pode desestabilizá-las, torná-las provisórias, relativas.
Coetzee parece se debater
entre a necessidade de falar
sobre as coisas de um mundo
que obviamente não funciona direito e o seu papel de
"mercador de ficções", que
lhe dá a prerrogativa de apenas escrever. E joga suas fichas.
Daí a compreensão que o
Señor C adquire já no final
do volume de que a força de
um trecho dos "Irmãos Karamazov", de Dostoiévski,
venha muito mais do tom e
da forma do que ali é dito do
que das idéias apresentadas:
"A resposta não tem nada a
ver com ética nem com política, e tudo a ver com retórica
(...). É a voz de Ivã, como concebida por Dostoiévski, não
sua argumentação, que me
arrebata". Como ele percebe
ali, é esse "o padrão ao qual
todo romancista sério deve
aspirar".
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP
DIÁRIO DE UM ANO RUIM
Autor: J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (248 págs.)
Avaliação: ótimo
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