São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008

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Crítica/"O Fazedor"

Borges aproxima invenção e forma histórica

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alguns títulos de Jorge Luis Borges estão sendo lançados pela Companhia das Letras: "Discussão", de 1932, com ensaios curtos sobre temas literários universais e argentinos (Homero, Dante, Whitman, a poesia gauchesca); "O Fazedor", de 1960, "miscelânea" de prosa e poesia (sonetos, canções e quartetos, principalmente), ambos com tradução de Josely Vianna Baptista; e "O Aleph", de 1949, talvez o livro de Borges mais celebrado no "gênero fantástico", com tradução do crítico Davi Arrigucci Jr.
Os dois tradutores são refinados leitores de literatura latino-americana, o que certamente pesou no acerto das traduções. Acrescento que, no meu modesto entender, Josely é poetisa que, há anos, está entre os mais relevantes escritores brasileiros.
Dos três livros, detenho-me em "O Fazedor", tanto por seu gênero híbrido quanto porque, sendo posterior aos outros, também lhes serve de comentário e desdobramento. A primeira coisa a notar é que ele pode ser lido como uma "arte poética", isto é, como um livro que ilustra a maneira como Borges compreende a literatura. O título deixa isso claro ao referir a concepção grega de poesia como um "fazer", um produzir racional de coisas contingentes. Mas se ele repõe a matriz artística antiga, também cabe saber que deslocamentos provoca nela.
De início, vale observar que Borges usa o termo "fazedor" em dois sentidos não triviais, que se sobrepõem. O primeiro sentido diz que, quando alguém escreve, antes de retratar o que há no mundo, o que "faz" é acrescentar alguma coisa a ele, interferindo em sua existência.
O segundo sentido evidencia que um escritor é como um ator que encena o texto de um autor outro, de tal modo que o principal "ato" de um texto é repor os textos anteriores que foram decisivos para a existência do seu. Ou seja, para dizê-lo como um quiasma, figura pertinente aqui, o primeiro sentido acentua um "fazer da representação", pelo qual a literatura introduz novos objetos no mundo; o segundo ressalta a existência de uma "representação do fazer", que se liga à descoberta de que cada objeto artístico mimetiza discursos de temporalidades diversas.

Máquina do mundo
O fundamental é notar que os dois movimentos estão articulados e trazem para o centro da poética de Borges a metáfora dantesca da "máquina do mundo", para a qual, diferentemente de Drummond, está especialmente curioso. Trata-se de uma urdidura engenhosa que estabelece razões secretas, labirínticas, entre os eventos aleatórios da experiência.
Borges a emprega para afirmar que a literatura é prática proliferante de coisas, fábrica que embaralha o mundo às ficções que produz, até o ponto em que já não é possível saber o que é ficção e o que é mundo, sendo já ambos necessariamente um e outro. Lida assim, a metáfora da "máquina do mundo" pode ser traduzida por uma espécie de lógica que imbrica o fazer da arte com os feitos do real; ou melhor, pelo estabelecimento de uma analogia entre o que o artista inventa e a forma histórica do mundo.
Nessa analogia, o papel determinante não é nem do artista, nem do mundo, mas do lugar da invenção encravado ou infuso no coração das próprias coisas. Não se trata de um lugar onde moram essências estáveis. Ao contrário, é justamente o que faz com que as coisas surjam e desapareçam, como em sonho ou em tudo o que é haver da morte: "O que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou perecível o mundo perderá?"


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)


O FAZEDOR
Autor:
Jorge Luis Borges
Tradução: Josely Vianna Baptista
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,00 (169 págs.)
Avaliação: ótimo



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