|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"O Fazedor"
Borges aproxima invenção e forma histórica
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Alguns títulos de Jorge
Luis Borges estão sendo lançados pela Companhia das Letras: "Discussão",
de 1932, com ensaios curtos sobre temas literários universais
e argentinos (Homero, Dante,
Whitman, a poesia gauchesca);
"O Fazedor", de 1960, "miscelânea" de prosa e poesia (sonetos,
canções e quartetos, principalmente), ambos com tradução
de Josely Vianna Baptista; e "O
Aleph", de 1949, talvez o livro
de Borges mais celebrado no
"gênero fantástico", com tradução do crítico Davi Arrigucci Jr.
Os dois tradutores são refinados leitores de literatura latino-americana, o que certamente pesou no acerto das traduções. Acrescento que, no meu
modesto entender, Josely é
poetisa que, há anos, está entre
os mais relevantes escritores
brasileiros.
Dos três livros, detenho-me
em "O Fazedor", tanto por seu
gênero híbrido quanto porque,
sendo posterior aos outros,
também lhes serve de comentário e desdobramento.
A primeira coisa a notar é que
ele pode ser lido como uma "arte poética", isto é, como um livro que ilustra a maneira como
Borges compreende a literatura. O título deixa isso claro ao
referir a concepção grega de
poesia como um "fazer", um
produzir racional de coisas
contingentes. Mas se ele repõe
a matriz artística antiga, também cabe saber que deslocamentos provoca nela.
De início, vale observar que
Borges usa o termo "fazedor"
em dois sentidos não triviais,
que se sobrepõem. O primeiro
sentido diz que, quando alguém
escreve, antes de retratar o que
há no mundo, o que "faz" é
acrescentar alguma coisa a ele,
interferindo em sua existência.
O segundo sentido evidencia
que um escritor é como um ator
que encena o texto de um autor
outro, de tal modo que o principal "ato" de um texto é repor os
textos anteriores que foram decisivos para a existência do seu.
Ou seja, para dizê-lo como um
quiasma, figura pertinente
aqui, o primeiro sentido acentua um "fazer da representação", pelo qual a literatura introduz novos objetos no mundo; o segundo ressalta a existência de uma "representação
do fazer", que se liga à descoberta de que cada objeto artístico mimetiza discursos de temporalidades diversas.
Máquina do mundo
O fundamental é notar que os
dois movimentos estão articulados e trazem para o centro da
poética de Borges a metáfora
dantesca da "máquina do mundo", para a qual, diferentemente de Drummond, está especialmente curioso. Trata-se de
uma urdidura engenhosa que
estabelece razões secretas, labirínticas, entre os eventos
aleatórios da experiência.
Borges a emprega para afirmar que a literatura é prática
proliferante de coisas, fábrica
que embaralha o mundo às ficções que produz, até o ponto
em que já não é possível saber o
que é ficção e o que é mundo,
sendo já ambos necessariamente um e outro. Lida assim, a
metáfora da "máquina do mundo" pode ser traduzida por uma
espécie de lógica que imbrica o
fazer da arte com os feitos do
real; ou melhor, pelo estabelecimento de uma analogia entre
o que o artista inventa e a forma
histórica do mundo.
Nessa analogia, o papel determinante não é nem do artista, nem do mundo, mas do lugar da invenção encravado ou
infuso no coração das próprias
coisas. Não se trata de um lugar
onde moram essências estáveis. Ao contrário, é justamente
o que faz com que as coisas surjam e desapareçam, como em
sonho ou em tudo o que é haver
da morte: "O que morrerá comigo quando eu morrer, que
forma patética ou perecível o
mundo perderá?"
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da
Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros"
(Edusp)
O FAZEDOR
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução: Josely Vianna Baptista
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,00 (169 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Vitrine Próximo Texto: Crítica/"King Kong e Cervejas": Estréia de Corsaletti em contos mesclam o banal e o poético Índice
|