São Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 2000


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CINEMA/ESTRÉIAS

"GENTE DA SICÍLIA"
Huillet e Straub criam "ato de resistência"

ALVARO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

M ais do que uma lacuna para o público brasileiro que acompanha a produção cinematográfica européia mais intelectualizada, a ausência dos franceses Danièle Huillet e Jean- Marie Straub tornava-se incômoda.
"Gente da Sicília", que no ano passado mereceu o prêmio da crítica na Mostra Internacional de São Paulo, é o primeiro filme da dupla francesa exibido aqui em circuito comercial, estimulando uma pergunta: como reagirá o público não-iniciado a esse olhar que é "faca só lâmina"?
Apesar da distância geográfica entre o sertão de Pernambuco e o extremo sul da península itálica, o caráter do verso de João Cabral de Mello Neto acima reproduzido autoriza uma aproximação.
Não apenas pela dureza dos elementos numa paisagem varada por luz implacável -e registrada no filme com o rigor de um preto-e-branco em alto contraste, além de enquadramentos talhados em pedra. A comparação é ainda mais apropriada quando se avalia a dignidade solar e seca de personagens como o cavalheiro que, num vagão de trem, expõe seu desejo de missões mais elevadas e seu horror à rotina dos velhos deveres. Ele poderia estar num romance de Guimarães Rosa, com seu chapéu e sua prosopopéia.
O anônimo passageiro e seus companheiros de viagem pertencem ao universo do escritor siciliano Elio Vittorini (1908-1966) e ao livro "Conversações na Sicília", do qual o filme adapta cinco ou seis diálogos magistrais.
Autobiográfico, o autor faz o personagem de Silvestro ensaiar os passos de uma proustiana viagem de reencontro de sua mãe. Edipiano, ele a indaga sobre antigas relações extramaritais. A resposta franca da mulher ainda sensual não deixará de incomodar o código moral burguês na base da consciência de todo leitor/espectador. Mais tarde, na cena final do filme, Silvestro travará um dos diálogos políticos mais cortantes e belos da história da literatura, numa conversa aparentemente banal sobre o preço do serviço de um amolador de facas.
"Sicilia!" (título original) alia à obra literária reflexões da linguagem cinematográfica. Se nos filmes anteriores de Straub/ Huillet o teor da narração divergia das imagens focalizadas, revelando realidades subterrâneas (como notou o filósofo Gilles Delleuze), agora é o silêncio que faz emergir verdades insuspeitadas.
Seja no aspecto político ou sob o ângulo formal, Straub e Huillet continuam fazendo de suas criações um "ato de resistência", como nomeou Delleuze, "um ato de resistência tem sempre duas faces, sendo ao mesmo tempo um ato humano e um ato de arte, ambos resistindo à morte".


Gente da Sicília
Sicilia!      Produção: França/Itália, 1998 Direção: Danièle Huillet e Jean-Marie Straub Com: Gianni Buscarino, Vittorio Vigneri Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 1




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