São Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
As incalculáveis cavernas da alma humana

A primeira edição de "O Vermelho e o Negro", de Stendhal, vendeu apenas 750 exemplares. Com o tempo, tornou-se um dos romances mais importantes da literatura universal. Uma obra anterior do mesmo autor, "De l'Amour", hoje um clássico, provocou de seu editor o seguinte comentário: "É um livro sagrado, pois ninguém bota a mão nele".
O próprio autor, que não tinha a modéstia entre as suas virtudes, disse diversas vezes que escrevia para cem leitores -devia ser verdade. E não era elitista, um autor recluso em sua torre de marfim. Fazia tudo para aparecer.
Chegou a assinar como seus, livros escritos por outros, inclusive uma biografia de Rossini, o compositor mais em moda na sua época. Foram inúmeros os casos de apropriação indébita que praticou.
E não somente na literatura. Fazia-se passar por secretário de Napoleão. Chegou ao cúmulo de se apresentar a Byron, na Ópera de Paris, como pessoa do círculo íntimo do imperador. O mais lamentável é que Byron acreditou nele e, a partir daquele encontro, manteve correspondência com Stendhal, pedindo que ele transmitisse a Napoleão seus conselhos e sugestões. Stendhal respondia, por si e por Napoleão.
Teria sido Stendhal um reles vigarista, um mitômano desvairado? Até certo ponto, sim. O máximo que alcançou, em matéria de prestígio, foi acompanhar um general da Intendência que participou da fracassada campanha da Rússia. Ficava sempre na retaguarda, em função burocrática.
Parece certo que, ao menos uma vez, penetrou no gabinete do imperador, levando-lhe um documento relativo aos suprimentos de um dos exércitos. Garantem que Napoleão nem olhou para ele, apanhou o documento e nem agradeceu.
Mesmo assim, reivindicou, mais tarde, um prêmio oficial e, diante de sua nulidade política, foi nomeado cônsul em Civitavecchia, um porto próximo a Roma, sem nenhuma expressão diplomática. Às tardes, Stendhal vestia o uniforme da carreira, fardão com bordados de ouro, chapéu de plumas, e ficava passeando de um lado para o outro, entre marinheiros e pescadores.
Henri Beyle de nascença, adotou o pseudônimo que se tornou famoso. E sua ânsia em mistificar era tanta que escreveu o próprio epitáfio, declarando-se Arrigo (Henrique em italiano) e dizendo-se milanês.
Com toda essa biografia negativa, que mereceu de um autor contemporâneo o título de "Monsieur Moi-Même" ("Senhor Eu Mesmo"), ele é hoje considerado o maior conhecedor da alma humana. Nem Flaubert, que era mais escritor, nem Balzac, que era um vulcão literário, atingiram a essência que habita o ser humano.
Tolstói o teve como modelo. E "O Vermelho e o Negro" e "A Cartuxa de Parma", dois de seus livros, estão há muito em lugar garantido entre as obras-primas da literatura universal.
Ao contrário de Flaubert, que sofria em busca da palavra justa, e de Balzac, que erguia o colosso de sua comédia humana, Stendhal nem se preocupava com os enredos de seus romances. "O Vermelho e o Negro" foi um caso policial da época, exaustivamente explorado pela imprensa.
Para não adotar um estilo melodramático, excessivamente literário, todos os dias ele lia duas ou três páginas do Código Civil, exorcizando qualquer veleidade de preciosismo, de rebuscamento formal. Uma prática que, posteriormente, outros autores também adotaram.
O importante para ele era captar aquilo que santo Agostinho chamou de "cavernas incalculáveis da alma humana". Ao falar em santo Agostinho, reparo que há entre os dois grandes escritores uma estranha afinidade de comportamento.
Até antes de sua conversão, Agostinho foi também uma espécie de Stendhal. Meio cínico, escatológico, devasso, ele nunca se perdoou pelo fato de o pai dele surpreendê-lo enquanto se masturbava. Ao escrever suas "Confissões", atribuiu a uma dor de barriga a convulsão que o tornaria um doutor e santo da Igreja. "Senhor, fazei-me casto, mas não agora!", pediu ele após a conversão, pois mantinha caso escabroso com uma viúva.
Voltando a Stendhal. Ele teve em Napoleão o seu deus particular. Sua obra é, em linhas gerais, o melhor comentário sobre a época napoleônica. Sua genialidade teve, como ponto mais alto, a famosa descrição da batalha de Waterloo, pouco mais de 15 linhas, em que o personagem principal de "A Cartuxa de Parma" vê uns soldados em fuga e ouve uns tiros disparados ao longe. Só mais tarde, ficaria sabendo que presenciara sem saber a maior batalha de seu tempo.
Esta é uma das cenas mais notáveis da novelística universal. Aquilo que alguns chamam de "ver uma árvore e descrever uma floresta". Falar de sua aldeia e definir o mundo. Numa palavra: a essência da arte em si, o particular valendo pelo universal.
Colocando-se sua genialidade em confronto com sua vigarice, temos em Stendhal uma das expressões mais sinceras das incalculáveis cavernas da alma humana.


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