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CARLOS HEITOR CONY
As incalculáveis cavernas da alma humana
A primeira edição de "O
Vermelho e o Negro", de
Stendhal, vendeu apenas 750
exemplares. Com o tempo, tornou-se um dos romances mais
importantes da literatura universal. Uma obra anterior do mesmo
autor, "De l'Amour", hoje um
clássico, provocou de seu editor o
seguinte comentário: "É um livro
sagrado, pois ninguém bota a
mão nele".
O próprio autor, que não tinha
a modéstia entre as suas virtudes,
disse diversas vezes que escrevia
para cem leitores -devia ser verdade. E não era elitista, um autor
recluso em sua torre de marfim.
Fazia tudo para aparecer.
Chegou a assinar como seus, livros escritos por outros, inclusive
uma biografia de Rossini, o compositor mais em moda na sua
época. Foram inúmeros os casos
de apropriação indébita que praticou.
E não somente na literatura.
Fazia-se passar por secretário de
Napoleão. Chegou ao cúmulo de
se apresentar a Byron, na Ópera
de Paris, como pessoa do círculo
íntimo do imperador. O mais lamentável é que Byron acreditou
nele e, a partir daquele encontro,
manteve correspondência com
Stendhal, pedindo que ele transmitisse a Napoleão seus conselhos
e sugestões. Stendhal respondia,
por si e por Napoleão.
Teria sido Stendhal um reles vigarista, um mitômano desvairado? Até certo ponto, sim. O máximo que alcançou, em matéria de
prestígio, foi acompanhar um general da Intendência que participou da fracassada campanha da
Rússia. Ficava sempre na retaguarda, em função burocrática.
Parece certo que, ao menos uma
vez, penetrou no gabinete do imperador, levando-lhe um documento relativo aos suprimentos
de um dos exércitos. Garantem
que Napoleão nem olhou para
ele, apanhou o documento e nem
agradeceu.
Mesmo assim, reivindicou, mais
tarde, um prêmio oficial e, diante
de sua nulidade política, foi nomeado cônsul em Civitavecchia,
um porto próximo a Roma, sem
nenhuma expressão diplomática.
Às tardes, Stendhal vestia o uniforme da carreira, fardão com
bordados de ouro, chapéu de plumas, e ficava passeando de um lado para o outro, entre marinheiros e pescadores.
Henri Beyle de nascença, adotou o pseudônimo que se tornou
famoso. E sua ânsia em mistificar
era tanta que escreveu o próprio
epitáfio, declarando-se Arrigo
(Henrique em italiano) e dizendo-se milanês.
Com toda essa biografia negativa, que mereceu de um autor contemporâneo o título de "Monsieur Moi-Même" ("Senhor Eu
Mesmo"), ele é hoje considerado o
maior conhecedor da alma humana. Nem Flaubert, que era
mais escritor, nem Balzac, que era
um vulcão literário, atingiram a
essência que habita o ser humano.
Tolstói o teve como modelo. E
"O Vermelho e o Negro" e "A Cartuxa de Parma", dois de seus livros, estão há muito em lugar garantido entre as obras-primas da
literatura universal.
Ao contrário de Flaubert, que
sofria em busca da palavra justa,
e de Balzac, que erguia o colosso
de sua comédia humana, Stendhal nem se preocupava com os
enredos de seus romances. "O
Vermelho e o Negro" foi um caso
policial da época, exaustivamente
explorado pela imprensa.
Para não adotar um estilo melodramático, excessivamente literário, todos os dias ele lia duas ou
três páginas do Código Civil,
exorcizando qualquer veleidade
de preciosismo, de rebuscamento
formal. Uma prática que, posteriormente, outros autores também adotaram.
O importante para ele era captar aquilo que santo Agostinho
chamou de "cavernas incalculáveis da alma humana". Ao falar
em santo Agostinho, reparo que
há entre os dois grandes escritores
uma estranha afinidade de comportamento.
Até antes de sua conversão,
Agostinho foi também uma espécie de Stendhal. Meio cínico, escatológico, devasso, ele nunca se
perdoou pelo fato de o pai dele
surpreendê-lo enquanto se masturbava. Ao escrever suas "Confissões", atribuiu a uma dor de
barriga a convulsão que o tornaria um doutor e santo da Igreja.
"Senhor, fazei-me casto, mas não
agora!", pediu ele após a conversão, pois mantinha caso escabroso com uma viúva.
Voltando a Stendhal. Ele teve
em Napoleão o seu deus particular. Sua obra é, em linhas gerais, o
melhor comentário sobre a época
napoleônica. Sua genialidade teve, como ponto mais alto, a famosa descrição da batalha de Waterloo, pouco mais de 15 linhas, em
que o personagem principal de "A
Cartuxa de Parma" vê uns soldados em fuga e ouve uns tiros disparados ao longe. Só mais tarde,
ficaria sabendo que presenciara
sem saber a maior batalha de seu
tempo.
Esta é uma das cenas mais notáveis da novelística universal.
Aquilo que alguns chamam de
"ver uma árvore e descrever uma
floresta". Falar de sua aldeia e definir o mundo. Numa palavra: a
essência da arte em si, o particular valendo pelo universal.
Colocando-se sua genialidade
em confronto com sua vigarice,
temos em Stendhal uma das expressões mais sinceras das incalculáveis cavernas da alma humana.
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