São Paulo, terça-feira, 14 de julho de 2009 |
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Ensaios discutem cultura e política "Seleção Natural" reúne 25 textos de Otavio Frias Filho, diretor da Folha, sobre cinema, ciência, teatro e jornalismo Obra de Charles Darwin, o impeachment de Collor e filmes como "A Fantástica Fábrica de Chocolate" são temas da coletânea
RAFAEL CARIELLO
A certa altura de "Auto da
Compadecida", de Ariano
Suassuna, Chicó e João Grilo
recorrem ao padre provinciano
para que abençoe um cachorro.
O religioso recusa. Os personagens argumentam então que
ele havia, recentemente, benzido o motor do carro novo de
certo major, e que não entendiam a razão da distinção.
"Motor é diferente, é uma
coisa que todo mundo benze.
Cachorro é que eu nunca ouvi
falar", diz o padre.
O trecho é citado em "Seleção Natural - Ensaios de Cultura e Política", reunião de 25 textos sobre teatro, cinema e jornalismo escritos por Otavio
Frias Filho em 25 anos.
O ajuste possível entre a água
benta e o automóvel ilustra o
conflito entre avanço capitalista e valores tradicionais que
impulsionou boa parte da produção cultural, dos embates
políticos e da reflexão sociológica no Brasil do século 20.
Existe uma história nessa
conjunção entre o arcaico e o
moderno, com seus renovados
produtos culturais e políticos.
Já nos anos 80, o lado mais
avançado dessa dinâmica parecia se descolar e tornar cada vez
mais débil a possibilidade de
uma tensão produtiva. Disso,
em grande medida, falam muitos dos ensaios do diretor de
Redação da Folha.
"O saber artesanal, o vigor
dos mitos, o respeito à tradição,
a disposição para o sacrifício
pessoal em nome de causas
transcendentais, tudo isso e
muito mais se perdeu com o
processo que Max Weber chamou de "desencantamento do
mundo'", diz o autor. "Digamos
que o livro fala sobre cultura na
fase final desse processo."
São vários os casos particulares, ali, em que esse processo
cultural e político aparece, em
meio a temas da predileção do
autor. Há desde análises sobre
filmes de ficção científica, anos
antes de um texto a propósito
da "história sentimental do tucanato", até interpretações
inovadoras sobre Monteiro Lobato e Heiner Müller.
Nos primeiros ensaios, produzidos até a metade dos anos
90, o autor é ainda herdeiro da
tradição ensaística paulista que
busca relacionar, dialeticamente, formas sociais específicas com suas produções culturais ou estéticas.
Um bom exemplo aparece
numa análise sobre Nelson Rodrigues. O autor pernambucano-carioca, diz, "escritor definitivamente urbano", tira sua
força da memória recente que a
sociedade brasileira ainda tem,
àquela altura, do mundo rural.
O "problema obsessivamente reiterado" em Nelson é o da
convergência desses dois mundos, em que a sexualidade patriarcal, rural, "entra em curto-circuito na cidade".
Para outros produtos artísticos, já nos anos 80, essa relação
entre forma social e forma estética parece não mais valer.
Levando a lógica de uma espécie de ensaísmo paulista a seu
limite, o avanço capitalista, o final do processo de desencantamento do mundo, tornaria impossível que se sustentasse até
mesmo a oposição entre economia e cultura.
Num dos primeiros textos,
sobre a publicidade de um sutiã
que marcou época, o escritor
apresenta o que parece ser, para ele, o limite do tipo de ensaísmo que ainda seguia.
"As condições nas quais a
ideologia se produz hoje é que
abrem uma possibilidade nova", diz. "Numa evolução recente, o plano das ideias se desliga das suas correspondências
de origem, conforme a ideologia se transforma em mercado,
e a forma capitalista invade esse último santuário."
Em 1988, "a sincronia já não
se processa da maneira usual,
quer dizer, num regime em que
dada uma formação ideológica
corresponde a ela uma determinada formação social".
Aos poucos esse método, levado ao seu limite e questionado desde os primeiros ensaios,
irá desaparecer na produção do
jornalista. Questionado, ele diz
que de fato, na fase mais antiga,
seu pensamento "está sob influência direta do marxismo e
do estruturalismo. Depois, tenho a pretensão de pensar de
modo mais livre."
Não há lamento nem celebração. A parte final é de esboços históricos, em que personagens -como o "conservador visionário" Tocqueville- e processos -a ascensão da psicologia darwinista- são tratados
sem fôrma ou roteiros predefinidos. As alternativas temáticas e metodológicas à sociologia da juventude são ponderadas e questionadas com seriedade, sem que haja adesão. SELEÇÃO NATURAL Autor: Otavio Frias Filho Lançamento: Publifolha Preço: R$ 34 (224 págs.) Texto Anterior: Cannes? Veneza? Não, Paulínia Próximo Texto: Crítica/Erudito: Orquestra de Minas comove pela potência Índice |
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