São Paulo, quarta-feira, 14 de julho de 2010

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MARCELO COELHO

Jovens sob completo controle


Julga-se por vezes defender o direito do adolescente quando se faz o contrário: negar sua autonomia


SEM QUERER, um juiz de São Paulo foi instrumento de uma espécie de sina, de carma, de azar ou boa sorte, não sei bem, que persegue a peça "O Despertar da Primavera".
A peça de Frank Wedekind (1864-1918) conta a história de um grupo de adolescentes vitimados pelas convenções burguesas. As moças, já quase na idade de casar, não recebem nenhuma explicação sobre de onde vêm os bebês. Um rapaz, de tão assustado com os próprios desejos, não consegue estudar, é reprovado nos exames e amaldiçoado pelo pai. Outra jovem, sem saber de nada, era abusada sexualmente pelo pai bêbado, e sua mãe, oprimida e envergonhada, faz vista grossa ao que acontece. Dois rapazes descobrem a homossexualidade.
Não, era demais. A peça foi proibida logo depois de estrear em 1906, com Peter Lorre e Lotte Lenya nos papéis principais. Verdade que a dupla, apesar de jovem na época, estava mais para casal de urubus do que para de pombinhos. Peter Lorre viria a se tornar o Vampiro de Dusseldorf, um dos piores pedófilos do cinema, e Lotte Lenya, principal atriz do teatro brechtiano, nunca teve poderes de sedução física à altura de seu talento.
Na Inglaterra, "O Despertar da Primavera" teve de esperar até 1974 para ser apresentada profissionalmente, quando falar em liberação sexual já era uma banalidade.
Pego essas informações no programa da peça, que foi transformada em musical da Broadway, chegando ao Brasil com adaptação de Charles Möeller e Cláudio Botelho. Assisti essa versão há alguns meses, no Teatro Sérgio Cardoso; "O Despertar da Primavera" voltou agora no Shopping Frei Caneca.
Está certo que eu não gosto de rock, de modo que ver um grupo de colegiais com roupas vitorianas berrando como possessos só fez crescer minha simpatia pelos bons tempos em que se reprimia esse tipo de comportamento.
Seja como for, a ideia de reencenar "O Despertar da Primavera" tinha me parecido um bocado artificial e deslocada. Por mais que a plateia, composta principalmente de jovens, vibrasse com a mensagem "prafrentex" do texto, o fato é que a tensão e o poder crítico do que Wedekind escreveu em 1891 já se dissiparam totalmente.
Foi então que surgiu a notícia. Um juiz decidiu que a atriz principal da peça, que tem 16 anos, não pode aparecer no palco com um seio descoberto. Detalhe: a moça é legalmente emancipada.
Mas o Estatuto da Criança e do Adolescente, que completa 20 anos de existência, criminaliza quem "produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente". Não discordo, é claro.
O problema surge nas interpretações. Uma encenação, cujo maior pecado é a trivialidade, torna-se "pornográfica", não porque tenha sexo explícito, mas porque uma jovem, legalmente dona de seu nariz, mostra o seio. Não seria pornografia se ela tivesse 18 anos; tendo 16, é pornografia. A peça recupera seu potencial de escândalo.
Há nisso tudo uma lógica e uma desrazão também.
Quando antigamente uma mulher adulta aparecia nua, pode-se pensar que punha em perigo a instituição do casamento; mas também havia algo de condenável em reforçar ainda mais a sua imagem de "objeto" numa época em que lhe negavam, na lei e no cotidiano, a condição de "sujeito".
Com os adolescentes, hoje, ocorre algo parecido. Eles se afirmam como "sujeitos" livres, numa sociedade que os estimula a isso -mas que lhes nega a autonomia também.
São tratados como "objetos", no sentido que se fala deles, se legisla sobre eles, se diz o que devem e o que não devem fazer. Os adultos têm sobre os adolescentes a fantasia de um controle total.
Não é preciso ser vidente para perceber que por trás dessa fantasia há motivações de conteúdo sexual também. Mas quando tal conteúdo explicita-se demais -na figura do adolescente desejável-, o adulto recua e se escandaliza.
A nudez do adolescente deixa nu, na verdade, o desejo que o adulto tem de dominá-lo, de controlá-lo, de reduzi-lo a objeto. Assim, julga-se por vezes defender o direito do adolescente quando se faz exatamente o contrário: negar sua autonomia. Pelo menos, a autonomia de aparecer numa peça de Wedekind do jeito que bem entender.

coelhofsp@uol.com.br


AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris



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