São Paulo, terça-feira, 14 de agosto de 2001

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"O ATOR INVISÍVEL"

A pequenez do mestre Yoshi Oida

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Algumas semanas atrás, enquanto solenes discursos abriam o festival internacional de um palanque em frente ao Teatro Municipal de Rio Preto, por um breve momento houve uma dispersão por parte da platéia.
O diretor de "Les Bonnes" (espetáculo que dali a instantes inauguraria o festival), Yoshi Oida, chegava ao teatro de bicicleta.
Apresentado pela imprensa local como "o melhor ator do mundo", Oida não perdeu um só momento para desautorizar o título. Cumpria o que lera no "Livro do Chá", de Okakura, quando deixou o Japão pela primeira vez, há mais de 30 anos: "Aqueles que não sabem ver a pequenez de sua própria grandeza não serão capazes de perceber a grandeza na pequenez dos outros".
Quando chegou sua vez de colocar em livro sua própria experiência, primeiro em "Um Ator Errante", depois em "O Ator Invisível", ambos publicados pela editora Beca, tendo o último sido lançado durante o festival, Oida não esqueceu a importância do despojamento, característica aliás de sua atuação como ator e diretor.
Em "Um Ator Errante", no qual expõe sua trajetória, detalhando não só sua participação em montagens históricas de Peter Brook ("Orghast", "A Conferência dos Pássaros", "O Mahabharata"), mas suas experiências no Japão, Oida não cede à tentação da automistificação, quase regra quando se trata de biografias de atores. Mostra-se vulnerável, com dúvidas sobre o próprio talento, "à deriva", como diz o título original.
Suas peregrinações pelo mundo podem de certo modo assim ser vistas como "angya", a viagem iniciática da cultura japonesa, que já deu à literatura obras como "Sendas de Oku", do poeta Bashô.
À paisagem descrita como no episódio fascinante da travessia do Sahara, na companhia internacional de Brook, encadeiam-se logo considerações técnico-filosóficas sobre a posição da coluna vertebral em relação à terra e ao céu, unificando o prosaico e o místico.
Compartilha memórias íntimas (com a sua obsessão pelo suicídio legada pelo amigo Mishima e curada pela iniciação no budismo) não para transmitir uma "mensagem" de esoterismo de auto-ajuda, mas para deixar no ar questões sem resposta, como os koans iniciáticos, que servem de base para seu espetáculo "Interrogações", apresentado no festival.
"Um Ator Errante", narração de um percurso, é complementado agora por "Um Ator Invisível", que propõe uma concepção essencial do ator.
Dividido em itens técnicos ("O Movimento", "A Interpretação", "A Fala"), o livro de Yoshi concentra-se na descrição de exercícios e métodos que experimentou ao longo da carreira (e aqui acrescenta também a recente experiência no mais recente espetáculo de Brook, "The Man Who").
Embora sendo mais indicado para atores, esse segundo livro aprofunda imagens e dados biográficos, além de definir melhor seu ideal de "invisibilidade", que, segundo ele, o bom ator deve ter, de forma a nunca atrair atenção para si, mas para o que mostra.
A profundidade dos ensinamentos de Yoshi se deduz, consequentemente, da força sintética de suas metáforas. Postula por exemplo que um ator que ostenta uma técnica sem se dispor à exposição de seus sentimentos tem "boca", mas não tem "língua". Quem viu Ismael Ivo em "Les Bonnes", despojado de qualquer maneirismo pela direção essencialista de Oida, entende imediatamente a metáfora.
Ao final de "Interrogações", modelo de espetáculo "invisível", no qual o protagonista é platéia que se esforça em responder às perguntas paradoxais do mestre Oida, o músico solta de repente um disco dourado que usava como instrumento.
Milagrosamente, o disco sobrevoa o palco em suaves círculos concêntricos e, quando o público abismado descobre enfim o fio que o sustenta, percebe que Yoshi já saiu de cena, evocando o haicai de Ishikawa: "Dizer um milagre banal e desaparecer, quando todos estiverem surpresos".
O contato com Yoshi Oida, seja ao vivo ou por escrito, deixa marcas profundas.

O Ator Invisível     
Autor: Yoshi Oida
Lançamento: editora Beca (176 págs.)
Quanto: R$ 25, em média



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