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Milton fala...
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Milton há 30 anos, na época do disco "Clube da Esquina" |
Às vésperas dos 60, artista lança CDs comemorativos e explica por que se tornou calado fora dos palcos
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...mas não sobre tudo
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Milton Nascimento é homem
sobre quem se convencionou saber que possuía tanta eloquência
de voz no palco quanto era incomunicativo no contato público
fora dele. Mas, a dois meses de
completar 60 anos, aquela novena
parece encerrada. Movido por
um sem-fim de comemorações
-pelos 60 anos, pelos 35 de "Travessia", pelos 30 do famigerado
álbum "Clube da Esquina"-, ele
anda falando pelos cotovelos.
Assim, conta da reedição tardia
de seu primeiro LP, "Milton Nascimento" (rebatizado "Travessia"). Festeja a edição inédita,
num CD duplo, das trilhas originais que fez para os dois primeiros balés do Grupo Corpo, "Maria
Maria" (76) e "Último Trem"
(80). Fala sobre sua saúde. E revela por que andou tão calado.
Folha - Essas datas redondas têm
um significado especial para você?
Milton Nascimento - Acho que
ganhei um presente, ou vários,
sem precisar mexer com nada em
especial. Estou, digamos, como se
diz quando a gente fica muito feliz? Eufórico. Tenho feito o espetáculo "Ser Minas Tão Gerais",
com o grupo teatral Ponto de Partida e os meninos de Araçuaí, que
é a parte mais pobre de Minas Gerais, e quando a gente sobe ao palco não adianta: toda vez eu choro.
Folha - E como você se sente às
vésperas de fazer 60 anos?
Milton - Você está confiando
nesse negócio de que o ano começou há poucos dias e de repente já
está no fim? Alguém mexeu nalguma coisa. Alguém mexeu, e eu
não estou acreditando nisso, não.
Porque comigo, por exemplo... Eu
não tenho 60 anos. Não tenho.
Quando eu era criança, 60 anos já
era "parabéns por ainda estar vivo". Mudou muito, né? Quando
eu era criança, uma mulher de 30
já era coroa, nem tinha mais casamento. Hoje, uma pessoa de 30
anos para mim é menino, né? Não
é por causa de preconceito, mas
não consigo me dar 60 anos.
Folha - Hoje você sente na pele
esse preconceito dos garotos?
Milton - Não, de jeito nenhum. E
isso me ajuda a pensar que há alguma coisa errada na natureza.
Botaram a Terra para girar mais
depressa, qualquer coisa, sei lá.
Folha - Os discos que estão saindo
são parte de uma comemoração?
Milton - Justamente. Os direitos
do "Travessia" pertencem a mim,
mas licenciei para a Dubas, que
está fazendo um trabalho em que
até dou alguns palpites. Relançaram o disco de Sergio Mendes &
Bossa Rio por sugestão minha.
Mas "Travessia" deixei por conta
deles, porque sabia que ia sair algo bem feito. Já as trilhas dos balés
são outra fase dos 30 anos de
"Clube da Esquina", ou sei lá o
quê. Esse é o primeiro lançamento do meu selo Nascimento, e o
próximo, no ano que vem, será a
trilha inédita que fiz para o bailarino David Parson.
Folha - Muitas músicas das trilhas
já foram lançadas, antes ou depois
dos balés. Elas foram feitas especialmente para os espetáculos?
Milton - A maioria das músicas
foi feita para os balés. "Maria Maria" está ali do jeito que gravei,
sem letra, sem nada. Como era
um negócio sobre uma negra e tal
e coisa, coloquei algumas músicas
que já havia gravado, como "Os
Escravos de Jó" e "Pai Grande".
As outras foram todas feitas para
o balé. Mas a gente demorou tanto para soltar que as músicas foram saindo. Há muitas músicas
que todo mundo conhece, mas o
original está nesse disco, retirado
das fitas que o Corpo usava.
Folha - Você teve dificuldades para tocar no governo militar, não?
Milton - É, isso foi. Caetano, Gil,
Chico e outros foram para fora do
país, e eu fiquei. Aí fiquei muito
exposto. Mandava uma música
para a Censura, censuravam só
porque tinha o meu nome. O mais
bravo foi o disco "Milagre dos
Peixes" (73). Censuraram tudo.
Ficou instrumental. Não era. Sem
saber, esse disco despertou em
mim minha voz como instrumento, tanto que depois comecei a
usar isso, e uso até hoje.
Folha - O que foi feito das letras?
Milton - Mais tarde fomos mudando o modo de falar, sem mudar realmente o que a gente queria. Aí passava. "Escravos de Jó",
por exemplo, passou a ser "Caxangá". Mas há umas que a gente
não gravou ainda. Sou louco para
gravar, e vou fazer ainda, "Hoje É
Dia de el Rey", com letra.
Não havia nada de "vamos pegar em armas" nas letras, sempre
fui contra isso, mas o conteúdo
chamava as pessoas. Por isso, depois do festival de 67, fecharam as
portas de TV, rádio, tudo, e eu
não tinha como trabalhar. Meu
Deus do céu, eu havia ficado desempregado dois anos em São
Paulo, passando fome, aí acontece
uma coisa superlegal comigo e
não posso trabalhar? Comecei a
trabalhar com os estudantes, escondido. A gente trocava, eu ia
para os lugares que eles precisavam, cantava, e a gente dividia a
grana para eles usarem na coisa.
Folha - Por que seu nome é menos
associado à perseguição pelo regime militar que o de Chico Buarque?
Milton - Acho que eu não queria
ficar falando disso. Realmente
nunca falei, ou falei poucas vezes.
Eu tinha um problema, que foi de
onde saiu a minha timidez. Eu dava entrevistas e, quando ia ler, saía
tudo diferente, porque havia gente deles nos jornais. Então comecei a me trancar. Vinha uma pessoa conversar comigo, eu só respondia "é" e "não"... O pessoal
morria de medo de me entrevistar
porque não saía entrevista nenhuma [ri". A partir de 86 melhorou.
Demorou, porque fica aquele negócio na cabeça da gente. Mas não
tem isso, não, eu falo mesmo.
Folha - Mais recentemente você
ficou doente e se manteve silencioso diante dos boatos, não?
Milton - Caramba [respira fundo". Eu tive e ainda tenho diabetes. O remédio que estava tomando não me deixava ter fome, fiquei com anorexia. Fui emagrecendo, emagrecendo, aí saiu que
eu tinha tudo, várias versões que
eram uma só. Não sei quem da
imprensa conseguiu dois médicos
que começaram a desmentir o
que os meus médicos falavam. Diziam que diabetes não causa isso,
não causa aquilo e que o que eu tinha mesmo era aquele negócio.
Mas meus médicos estavam falando a verdade, e quando saí do
hospital comecei a fazer exercícios, a comer de novo. Demorou
para engordar, mas tudo bem.
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