São Paulo, quarta-feira, 14 de agosto de 2002

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Milton fala...

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Milton há 30 anos, na época do disco "Clube da Esquina"



Às vésperas dos 60, artista lança CDs comemorativos e explica por que se tornou calado fora dos palcos

...mas não sobre tudo

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Milton Nascimento é homem sobre quem se convencionou saber que possuía tanta eloquência de voz no palco quanto era incomunicativo no contato público fora dele. Mas, a dois meses de completar 60 anos, aquela novena parece encerrada. Movido por um sem-fim de comemorações -pelos 60 anos, pelos 35 de "Travessia", pelos 30 do famigerado álbum "Clube da Esquina"-, ele anda falando pelos cotovelos.
Assim, conta da reedição tardia de seu primeiro LP, "Milton Nascimento" (rebatizado "Travessia"). Festeja a edição inédita, num CD duplo, das trilhas originais que fez para os dois primeiros balés do Grupo Corpo, "Maria Maria" (76) e "Último Trem" (80). Fala sobre sua saúde. E revela por que andou tão calado.

Folha - Essas datas redondas têm um significado especial para você?
Milton Nascimento -
Acho que ganhei um presente, ou vários, sem precisar mexer com nada em especial. Estou, digamos, como se diz quando a gente fica muito feliz? Eufórico. Tenho feito o espetáculo "Ser Minas Tão Gerais", com o grupo teatral Ponto de Partida e os meninos de Araçuaí, que é a parte mais pobre de Minas Gerais, e quando a gente sobe ao palco não adianta: toda vez eu choro.

Folha - E como você se sente às vésperas de fazer 60 anos?
Milton -
Você está confiando nesse negócio de que o ano começou há poucos dias e de repente já está no fim? Alguém mexeu nalguma coisa. Alguém mexeu, e eu não estou acreditando nisso, não. Porque comigo, por exemplo... Eu não tenho 60 anos. Não tenho. Quando eu era criança, 60 anos já era "parabéns por ainda estar vivo". Mudou muito, né? Quando eu era criança, uma mulher de 30 já era coroa, nem tinha mais casamento. Hoje, uma pessoa de 30 anos para mim é menino, né? Não é por causa de preconceito, mas não consigo me dar 60 anos.

Folha - Hoje você sente na pele esse preconceito dos garotos?
Milton -
Não, de jeito nenhum. E isso me ajuda a pensar que há alguma coisa errada na natureza. Botaram a Terra para girar mais depressa, qualquer coisa, sei lá.

Folha - Os discos que estão saindo são parte de uma comemoração?
Milton -
Justamente. Os direitos do "Travessia" pertencem a mim, mas licenciei para a Dubas, que está fazendo um trabalho em que até dou alguns palpites. Relançaram o disco de Sergio Mendes & Bossa Rio por sugestão minha. Mas "Travessia" deixei por conta deles, porque sabia que ia sair algo bem feito. Já as trilhas dos balés são outra fase dos 30 anos de "Clube da Esquina", ou sei lá o quê. Esse é o primeiro lançamento do meu selo Nascimento, e o próximo, no ano que vem, será a trilha inédita que fiz para o bailarino David Parson.

Folha - Muitas músicas das trilhas já foram lançadas, antes ou depois dos balés. Elas foram feitas especialmente para os espetáculos?
Milton -
A maioria das músicas foi feita para os balés. "Maria Maria" está ali do jeito que gravei, sem letra, sem nada. Como era um negócio sobre uma negra e tal e coisa, coloquei algumas músicas que já havia gravado, como "Os Escravos de Jó" e "Pai Grande". As outras foram todas feitas para o balé. Mas a gente demorou tanto para soltar que as músicas foram saindo. Há muitas músicas que todo mundo conhece, mas o original está nesse disco, retirado das fitas que o Corpo usava.

Folha - Você teve dificuldades para tocar no governo militar, não?
Milton -
É, isso foi. Caetano, Gil, Chico e outros foram para fora do país, e eu fiquei. Aí fiquei muito exposto. Mandava uma música para a Censura, censuravam só porque tinha o meu nome. O mais bravo foi o disco "Milagre dos Peixes" (73). Censuraram tudo. Ficou instrumental. Não era. Sem saber, esse disco despertou em mim minha voz como instrumento, tanto que depois comecei a usar isso, e uso até hoje.

Folha - O que foi feito das letras?
Milton -
Mais tarde fomos mudando o modo de falar, sem mudar realmente o que a gente queria. Aí passava. "Escravos de Jó", por exemplo, passou a ser "Caxangá". Mas há umas que a gente não gravou ainda. Sou louco para gravar, e vou fazer ainda, "Hoje É Dia de el Rey", com letra.
Não havia nada de "vamos pegar em armas" nas letras, sempre fui contra isso, mas o conteúdo chamava as pessoas. Por isso, depois do festival de 67, fecharam as portas de TV, rádio, tudo, e eu não tinha como trabalhar. Meu Deus do céu, eu havia ficado desempregado dois anos em São Paulo, passando fome, aí acontece uma coisa superlegal comigo e não posso trabalhar? Comecei a trabalhar com os estudantes, escondido. A gente trocava, eu ia para os lugares que eles precisavam, cantava, e a gente dividia a grana para eles usarem na coisa.

Folha - Por que seu nome é menos associado à perseguição pelo regime militar que o de Chico Buarque?
Milton -
Acho que eu não queria ficar falando disso. Realmente nunca falei, ou falei poucas vezes. Eu tinha um problema, que foi de onde saiu a minha timidez. Eu dava entrevistas e, quando ia ler, saía tudo diferente, porque havia gente deles nos jornais. Então comecei a me trancar. Vinha uma pessoa conversar comigo, eu só respondia "é" e "não"... O pessoal morria de medo de me entrevistar porque não saía entrevista nenhuma [ri". A partir de 86 melhorou. Demorou, porque fica aquele negócio na cabeça da gente. Mas não tem isso, não, eu falo mesmo.

Folha - Mais recentemente você ficou doente e se manteve silencioso diante dos boatos, não?
Milton -
Caramba [respira fundo". Eu tive e ainda tenho diabetes. O remédio que estava tomando não me deixava ter fome, fiquei com anorexia. Fui emagrecendo, emagrecendo, aí saiu que eu tinha tudo, várias versões que eram uma só. Não sei quem da imprensa conseguiu dois médicos que começaram a desmentir o que os meus médicos falavam. Diziam que diabetes não causa isso, não causa aquilo e que o que eu tinha mesmo era aquele negócio. Mas meus médicos estavam falando a verdade, e quando saí do hospital comecei a fazer exercícios, a comer de novo. Demorou para engordar, mas tudo bem.



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