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São Paulo, quinta-feira, 14 de agosto de 2003

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TEATRO

Versão de "Tio Vânia" alivia claustrofobia de Tchecov

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Anton Tchecov (1860-1904) era um novelista que escrevia comédias cheias de melancolia. Tão complexo que seu parceiro Stanislávski teve que criar um método específico para encenar suas peças, convidando o ator a preencher com sua própria imaginação e sensibilidade as alusões e frases incompletas do texto. Se tal método se estendeu pelo mundo, modernizando o teatro, foi Tchecov a principal vítima de seu efeito colateral, quando passou a ter encenações que arrastavam atores imersos em si mesmos.
Um dos grandes trunfos da encenação de Freire-Filho para "Tio Vânia" é trazer de volta a luz intensa desse dia de outono, trocando a claustrofobia do "intimismo" por amplas marcas e emoções expostas sem voltar, no entanto, ao convencionalismo pré-stanislavskiano.
Com a cumplicidade de Daniela Thomas, a elegante discrição dos figurinos de Marcelo Pies e definindo cada personagem a partir da clara trilha de Tato Taborda, Freire-Filho cria um preciso e lúdico espaço de jogo para os atores, segundo sua competência habitual. E quando, como nessa montagem, os atores estão à altura do talento do encenador, o resultado é deslumbrante. Não há pequenos papéis.
Alby Ramos, com tipo e violão marcantes, e a carismática Ida Gomes garantem o bom senso camponês em contraste com a serena majestade de Suzana Faini, como a matriarca Vassilievna, e o generosamente odioso professor Serebriacov de Rogério Fróes, por quem todos se sacrificam, embora saibam de sua mediocridade.
À imprescindível experiência dos veteranos se junta o frescor de Bel Kutner, que garante o difícil papel de Sônia, que, sem alarde, é a narradora da peça, já que é sobrinha do Tio Vânia, e enche o palco com a ternura dos olhos que herdou da mãe. Débora Bloch, elegantemente contida no papel da tímida Helena, sabe se expor com segurança nos monólogos e dá apoio seguro para a antológica interpretação de Diogo Vilela.
Há muito que Vilela merecia um personagem como o Tio Vânia, que sacrifica sua felicidade e percebe tarde demais que foi em vão. Imerso em álcool e outono, mas se agarrando ao humor como último galho antes do abismo, ele é trágico e hilário ao mesmo tempo, comovendo sem cair na autopiedade. É um privilégio testemunhar sua entrega ao teatro.
Luciano Chirolli, Astrov da temporada paulista, o médico idealista por quem todos se fascinam, além da instantânea desenvoltura, faz com clareza o elo com a platéia. Seu discurso ecológico parece remeter à Amazônia, e sua lucidez amargurada, à Mário de Andrade, personagem que o marcou recentemente. Quando se dirige aos homens do futuro, logo na primeira cena, ao se questionar sobre o que estarão fazendo os homens nos trópicos, deixa a idéia, clara como um dia de outono, que Tchecov escreveu a peça para nós, hoje, no Brasil.
Assim, após uma mudança de 360 graus, e sem medo de se redescobrir infeliz, "Tio Vânia" não acaba em um impasse, mas em um contagiante grito silencioso por uma nova tomada de posição.


Tio Vânia    
Direção: Aderbal Freire-Filho
Com: Diogo Vilela, Débora Bloch, Rogério Fróes
Onde: Faap (r. Alagoas, 903, Higienópolis, tel. 0/xx/11/3662-7233)
Quando: sex. e sáb. (21h); dom. (18h); até 28/9
Quanto: R$ 40 e R$ 50



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