São Paulo, sábado, 14 de agosto de 2004

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"PAIXÃO POR SÃO PAULO"

Antologia traz visões da esfinge mutante ao longo de 83 anos

ESPECIAL PARA A FOLHA

Tematizar a cidade tem sido, para escritores modernistas e pós-modernistas, tão comum quanto tematizar a natureza foi para românticos e simbolistas. Com suas camadas sucessivas de culturas e imigrações, luxo e lixo, solidão e multidão, a cidade é topos privilegiado da poesia modernista internacional. No Brasil, a história dessa poesia-das-cidades se confunde, de maneira peculiar, com a da vila interiorana que virou metrópole cosmopolita em menos de um século.
"Paixão por São Paulo - Antologia Poética Paulistana" reúne 71 poetas e 130 poemas de diversos períodos e escolas, que tentaram traduzir a experiência do choque da "Paulicéia desvairada".
O critério de optar por poemas que tivessem São Paulo como ambiente nos permite entrever como a cidade foi representada pelos poetas ao longo dos últimos 83 anos. Em 1921, o movimento acelerado e a transformação radical dessa "superfície-limite" já eram flagrados por Afonso Schmidt: o sujeito-flanêur observa "árvores despidas / crucificadas, / pelas avenidas" e pergunta: "Que multidão meu silêncio povoa?".
Em 1925 vemos Guilherme de Almeida fazer uma síntese objetivista da paradoxal "natureza urbana": "Na gaiola cheia / (pedreiros e carpinteiros) / o dia gorjeia". A nostalgia invade os versos de Martins Fontes, nos anos 30, mas a bucólica "cidade da garoa" já aparece como "assombração".
Uma seleção de epítetos da obra de poetas de períodos diversos tem traço comum: a personificação da cidade. Ou melhor seria dizer: sua monstrificação. Retratada com um misto de amor e ódio, fascínio e medo, ora surge como uma "uiara de cabelo vermelho" (Cassiano Ricardo), "fantasma" (Fontes), mulher "ciumenta, narcisista" (Rosana Piccolo).
Ora é uma criatura que "come terra, come espaço", ora "devora seus próprios filhos" com suas "chaminés parturientes do Brás" (Sérgio Milliet). Em anos mais recentes, aparece como um "esqueleto múltiplo e inevitável" (Willer), uma "deusa de cimento" (Bell), e ainda, em outros, como "puta de mil faces", "ventre do Leviatã", "escrava do motor a gasolina" e "câncer de lirismo". Elogios nada educados para uma senhora de 450 anos.
Em poetas mais recentes parece haver uma certa aceitação da cidade como arena de conflitos, em todos os seus excessos e paradoxos. Enquanto em Roberto Piva vemos o poeta procurando a saída da "cidade-sucata", em Régis Bonvicino há uma constatação: "não há saídas / só ruas viadutos avenidas". Essa esfinge mutante, que recusa a entregar seu "sentido" de bandeja, continua desafiando poetas. De repente, pode se transformar, como no poema de Reynaldo Damazio, num deus-mirim que chega e diz: "Aí, mano, passa a grana / ou te devoro".
Sabendo que nenhuma antologia consegue abarcar tudo a que se propõe, só nos resta sugerir inclusões. O leitor ganharia com mais poemas como os do vanguardista Blaise Cendrars ou de concretistas, como Ronald de Azeredo e Haroldo de Campos. Já o rap e outras tradições orais como a dos cantadores nordestinos e compositores, poderiam ter marcado presença. Fica para uma próxima. (RODRIGO GARCIA LOPES)


Paixão por São Paulo - Antologia Poética Paulistana
    
Organizador: Luiz Roberto Guedes
Editora: Terceiro Nome
Quanto: R$ 35 (184 págs.)



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