São Paulo, sexta, 14 de agosto de 1998

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Minha noite com Rachel Welch

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial


Modéstia à parte, não foi das minhas melhores noites. A culpa não foi minha: preparei-me para o que desse e viesse, mas nada de excepcional veio nem nada me foi dado -o que é pena.
Oficialmente, Rachel Welch vinha fazer uma curta temporada no Brasil. Profissional competente, ela sabia o que valia naquela época. Tinha de ganhar a vida e o fazia com seriedade. Em Las Vegas, seus produtores haviam bolado um enlatado de trânsito internacional e lá foi ela, com 17 acompanhantes e 2 mil quilos de bagagem, requebrar o corpo monumental em Paris, no México e no Brasil.
Não se considerava uma atriz, muito menos uma cantora. Definia-se como "entertainer" -função que o Ratinho também poderia invocar. Tinha consciência de que muita gente pagaria uma nota firme para ser entretida "por" ela. E pagaria muito mais se fosse entretida "com" ela.
Foi com sabedoria -e charme até demais- que ela se esmerou em provar, e sobretudo em mostrar, que é um produto de consumo garantido. Quando se abre uma garrafa de Coca-Cola, não se espera encontrar dentro dela um Dom Perignon de safra nobre ou um pouco de água da miraculosa água da gruta de Lourdes. Encontra-se Coca-Cola mesmo.
Provocou, como só acontecer nessas horas, uma batalha campal com a imprensa. Os artistas que aqui chegam para conhecer nossas maravilhas, ou apenas para defender o leite das suas crianças, não se sentem obrigados a declarar nada de importante. Nada têm a declarar, nem mesmo à alfândega, que generosamente dispõe de uma saída encimada com o aviso, "nada a declarar", em pelo menos duas línguas.
Daí a irritação dos visitantes que não compreendam a insistência dos jornalistas em saber o que pensam da vida sexual do presidente dos Estados Unidos ou da crise das bolsas asiáticas. Afinal, quem se interessaria em saber o que Rachel pensa -se é que ela pensa realmente- sobre a queda do iene ou sobre a convulsão do Ronaldinho?
O pior que disseram a respeito dela, naquele ano em que se exibiu em São Paulo e no Rio, foi típico da maledicência nacional: ela seria apenas um travesti bem-sucedido. Para tirar essa dúvida, uma ida ao seu show seria esclarecedora. E lá fui eu, não apenas ao seu show, mas a seu camarim.
Fora do palco, Rachel é uma americana típica, de idade indefinível, saúde óbvia e humor variável. Fala francês e espanhol, o pai dela era hispânico, não sei mais de onde.
Consegue até ser bonita, mas sem exagero. Jogada nas ruas, seria um rosto na multidão porque se destacava sobriamente pelo estilo, pela classe padronizada das mulheres habituadas ao sucesso, à admiração dos homens. Nada mais do que isso -e já é muita coisa.
Mas em cima do palco -mesmo sem ser uma atriz excepcional ou uma cantora de talento- a mulher comum se transformava num animal formidável, um espécime da carne e da forma. Aprendeu diante do espelho, e com mestres entendidíssimos, a arte de mexer com o corpo, o rosto e o resto.
De botar a língua para fora na hora certa, no ângulo exato para sugerir aquele ato que o presidente Clinton pede para as estagiárias da Casa Branca fazerem com ele. De revirar os olhos e passar as mãos pelas próprias coxas.
Depois do show, ela me recebeu em sua privacidade. Sua secretária conseguira vencer as resistências do guarda-costas oficial da atriz, um mancebo de 24 anos, que adota a tática do "nunca estar a mais de um metro" da pessoa a quem dá proteção. Garantem que essa distância às vezes é bem menor, pois durante a noite Rachel precisa mais do que nunca ser bem protegida.
Ela descansava de um show para enfrentar outro. A fera que eu vira no palco estava reduzida a uma jovem senhora gentil, bonita sem dúvida, mas sem nenhum apelo que me fizesse subir pelas paredes ou descer aos infernos.
Acabara de comer uma maçã, sua boca cheirava bem. Esperou pelo interrogatório que não houve. Afinal, sem querer botar banca de original, não costumo perguntar quase nada às pessoas que entrevisto. Converso as trivialidades do momento. Tempos atrás, o Emerson Fittipaldi estranhou o meu modo de trabalhar. Ao fim de dois dias de convivência, ele me perguntou quando a entrevista ia começar. "Já acabou", respondi.
No papo informal, praticamente em três línguas diferentes, fiquei sabendo (mais ou menos) o que ela pensava de si mesma. Considerava-se um objeto sexual e não se incomodava com isso. Se para defender o mundo de uma catástrofe nuclear, tivesse de dormir uma noite com Yeltsin ou com um aiatolá, entraríamos todos por um cano deslumbrante. Jamais repetiria aquele personagem de Guy de Maupassant, "Bola de Sebo", que fez o sacrifício de sua carne para salvar a viagem de uma diligência.
Admirava gênios. Quando desejava elogiar alguém, dizia: "É um cérebro!". E seus olhos brilhavam. De tanto rebolar o corpo pelos palcos do mundo, cultivava furiosa admiração pelas pessoas que fazem sucesso em outros palcos sem necessidade de mexer com as coxas e os quadris.
Infelizmente, não houve tempo para que ela pudesse apreciar o meu cérebro.



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