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Minha noite com Rachel Welch
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Modéstia à parte, não foi das
minhas melhores noites. A culpa não foi minha: preparei-me
para o que desse e viesse, mas
nada de excepcional veio nem
nada me foi dado -o que é pena.
Oficialmente, Rachel Welch
vinha fazer uma curta temporada no Brasil. Profissional
competente, ela sabia o que
valia naquela época. Tinha de
ganhar a vida e o fazia com seriedade. Em Las Vegas, seus
produtores haviam bolado um
enlatado de trânsito internacional e lá foi ela, com 17
acompanhantes e 2 mil quilos
de bagagem, requebrar o corpo
monumental em Paris, no México e no Brasil.
Não se considerava uma
atriz, muito menos uma cantora. Definia-se como "entertainer" -função que o Ratinho
também poderia invocar. Tinha consciência de que muita
gente pagaria uma nota firme
para ser entretida "por" ela. E
pagaria muito mais se fosse
entretida "com" ela.
Foi com sabedoria -e charme até demais- que ela se esmerou em provar, e sobretudo
em mostrar, que é um produto
de consumo garantido. Quando se abre uma garrafa de Coca-Cola, não se espera encontrar dentro dela um Dom Perignon de safra nobre ou um
pouco de água da miraculosa
água da gruta de Lourdes. Encontra-se Coca-Cola mesmo.
Provocou, como só acontecer
nessas horas, uma batalha
campal com a imprensa. Os artistas que aqui chegam para
conhecer nossas maravilhas,
ou apenas para defender o leite das suas crianças, não se
sentem obrigados a declarar
nada de importante. Nada têm
a declarar, nem mesmo à alfândega, que generosamente
dispõe de uma saída encimada
com o aviso, "nada a declarar", em pelo menos duas línguas.
Daí a irritação dos visitantes
que não compreendam a insistência dos jornalistas em saber
o que pensam da vida sexual
do presidente dos Estados Unidos ou da crise das bolsas asiáticas. Afinal, quem se interessaria em saber o que Rachel
pensa -se é que ela pensa
realmente- sobre a queda do
iene ou sobre a convulsão do
Ronaldinho?
O pior que disseram a respeito dela, naquele ano em que se
exibiu em São Paulo e no Rio,
foi típico da maledicência nacional: ela seria apenas um
travesti bem-sucedido. Para tirar essa dúvida, uma ida ao
seu show seria esclarecedora. E
lá fui eu, não apenas ao seu
show, mas a seu camarim.
Fora do palco, Rachel é uma
americana típica, de idade indefinível, saúde óbvia e humor
variável. Fala francês e espanhol, o pai dela era hispânico,
não sei mais de onde.
Consegue até ser bonita, mas
sem exagero. Jogada nas ruas,
seria um rosto na multidão
porque se destacava sobriamente pelo estilo, pela classe
padronizada das mulheres habituadas ao sucesso, à admiração dos homens. Nada mais do
que isso -e já é muita coisa.
Mas em cima do palco
-mesmo sem ser uma atriz
excepcional ou uma cantora
de talento- a mulher comum
se transformava num animal
formidável, um espécime da
carne e da forma. Aprendeu
diante do espelho, e com mestres entendidíssimos, a arte de
mexer com o corpo, o rosto e o
resto.
De botar a língua para fora
na hora certa, no ângulo exato
para sugerir aquele ato que o
presidente Clinton pede para
as estagiárias da Casa Branca
fazerem com ele. De revirar os
olhos e passar as mãos pelas
próprias coxas.
Depois do show, ela me recebeu em sua privacidade. Sua
secretária conseguira vencer as
resistências do guarda-costas
oficial da atriz, um mancebo
de 24 anos, que adota a tática
do "nunca estar a mais de um
metro" da pessoa a quem dá
proteção. Garantem que essa
distância às vezes é bem menor, pois durante a noite Rachel precisa mais do que nunca
ser bem protegida.
Ela descansava de um show
para enfrentar outro. A fera
que eu vira no palco estava reduzida a uma jovem senhora
gentil, bonita sem dúvida, mas
sem nenhum apelo que me fizesse subir pelas paredes ou
descer aos infernos.
Acabara de comer uma maçã, sua boca cheirava bem. Esperou pelo interrogatório que
não houve. Afinal, sem querer
botar banca de original, não
costumo perguntar quase nada
às pessoas que entrevisto. Converso as trivialidades do momento. Tempos atrás, o Emerson Fittipaldi estranhou o meu
modo de trabalhar. Ao fim de
dois dias de convivência, ele
me perguntou quando a entrevista ia começar. "Já acabou",
respondi.
No papo informal, praticamente em três línguas diferentes, fiquei sabendo (mais ou
menos) o que ela pensava de si
mesma. Considerava-se um
objeto sexual e não se incomodava com isso. Se para defender o mundo de uma catástrofe nuclear, tivesse de dormir
uma noite com Yeltsin ou com
um aiatolá, entraríamos todos
por um cano deslumbrante. Jamais repetiria aquele personagem de Guy de Maupassant,
"Bola de Sebo", que fez o sacrifício de sua carne para salvar a
viagem de uma diligência.
Admirava gênios. Quando
desejava elogiar alguém, dizia:
"É um cérebro!". E seus olhos
brilhavam. De tanto rebolar o
corpo pelos palcos do mundo,
cultivava furiosa admiração
pelas pessoas que fazem sucesso em outros palcos sem necessidade de mexer com as coxas e
os quadris.
Infelizmente, não houve
tempo para que ela pudesse
apreciar o meu cérebro.
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