São Paulo, sexta, 14 de agosto de 1998

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ACONTECE NO RIO
Evento discute antropofagia e globalização

ANNA LEE
da Sucursal do Rio

Os 70 anos do "Manifesto Antropofágico", de Oswald de Andrade, completados este ano, são pretexto. A discussão sobre os traços antropofágicos da obra de Tarsila do Amaral, apenas mais um tema a ser considerado.
O evento "Antropofagia - Releituras" -que acontece até o dia 20 de setembro, no Museu da República, no Catete (zona sul do Rio)- quer promover uma reflexão sobre a pertinência do conceito de antropofagia no mundo globalizado, diz o professor João Cézar de Castro Rocha, um dos idealizadores do projeto.
A Comissão Uerj: 500 Anos e o museu são os organizadores do evento.
"Nos momentos mais importantes de redefinição cultural no Brasil, a discussão sobre antropofagia sempre veio à tona. Foi assim no romantismo, no modernismo e no tropicalismo. Estamos quase no século 21, me parece natural voltar ao assunto", diz Rocha.
"Isso acontece porque até hoje o Brasil não aprendeu a ser antropofágico em seu cotidiano. Nossa sociedade não sabe lidar com as diferenças existentes não só entre nossa cultura e as de povos estrangeiros, mas dentro do próprio país."
Quando se fala em antropofagia, é impossível deixar de abordar o "Manifesto Antropofágico", de Oswald de Andrade.
Afinal, o manifesto -lançado em maio de 1928 na "Revista de Antropofagia" e cuja inspiração imediata veio da tela de Tarsila do Amaral "Abaporu" (antropófago, em tupi)- preconizava a devoração cultural das técnicas importadas dos países desenvolvidos, para reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em produtos de exportação.
"Não há dúvida de que o nome de Oswald de Andrade é uma referência ao falar sobre antropofagia. Mas esse conceito faz parte dos primórdios de nossa história e engloba uma discussão muito mais ampla", diz Rocha.
Segundo o professor, a associação entre a história do Brasil e a antropofagia foi selada desde quando foram veiculadas na Europa do século 16 as primeiras imagens do Novo Mundo.
Os textos dos cronistas e as cartografias, explica Rocha, retratavam o Brasil como uma grande extensão de terra, cujo litoral era habitado ou por índios que coletavam pau-brasil, para fazer comércio com os europeus, ou por índios que coletavam os próprios europeus para devorá-los em rituais antropofágicos.
"Esses rituais eram baseados na crença de que, junto com a carne do inimigo, eram ingeridas também suas qualidades. Muito mais do que um simples ato de canibalismo, como foi compreendido pela cultura ocidental tradicional", afirma Rocha.
"I-Juca-Pirama"
Entender o que é antropofagia é, para ele, sobretudo "compreender profundamente" o poema de Gonçalves Dias "I-Juca-Pirama", no livro "Últimos Contos", de 1851.
"I-Juca-Pirama", traduzido literalmente da língua tupi, quer dizer: o que há de ser morto e é digno de ser morto.
Ele ainda cita uma nota de José de Alencar no livro "Ubirajara", de 1874, na qual descreveu "com perfeita vocação etnográfica" o sentido do ritual antropofágico: "Ele nada tem a ver com canibalismo, trata-se antes de apoderar da valentia e do valor do inimigo. Por isso ele precisa ser um Juca Pirama, isto é, precisa ser um adversário cujo valor o torna digno de ser devorado".
"A essência do conceito de antropofagia está no relacionamento do eu com o outro. No mundo sem limites da era da globalização, aprender a lidar com as diferenças entre os povos e assimilar o que cada um tem de melhor é questão de sobrevivência. Essa é a discussão que estamos levantando", diz Rocha.
O evento "Antropofagia - Releituras", além da exposição "Antropofagia?", vai promover conferências e uma mostra de vídeos sobre o assunto.



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