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LIVROS/LANÇAMENTOS
"SEUS OLHOS VIAM DEUS"
Sai no Brasil principal obra da autora, escrita em 1937
Zora Hurston pinta contrastes negros nos EUA dos anos 30
DENISE MOTA
EDITORA-ASSISTENTE DA ILUSTRADA
Filha de um estupro, abandonada pela mãe, desconhecida pelo
pai, criada pela avó para se casar
com o primeiro homem que lhe
emprestasse um sobrenome ao
menos respeitável, a vida de Janie
Mae Crawford está longe de ser
modelar, mas transformou-a numa das mais importantes mulheres de seu país, ao menos na literatura negra americana.
Sobrevivente de guerra -não
entre potências, mas entre homens e mulheres negros e brancos que forjaram os EUA pós-escravidão-, Janie é a voz de Zora
Neale Hurston (1891-1960), antropóloga, dramaturga e ficcionista
que tem "Seus Olhos Viam Deus",
mais conhecida obra de sua lavra,
publicada agora no Brasil.
Escrito em sete semanas, em
1937, o livro descreve a trajetória
de Janie rumo ao autoconhecimento e à libertação pessoal, numa jornada emoldurada por três
relacionamentos, nos quais experimentou graus variáveis de submissão, devotamento e paixão.
"Zora era uma mulher muito
independente e, nesse romance,
ela toca em questões que teve de
enfrentar em sua vida também: o
livro foi inspirado em um relacionamento que ela teve e do qual fugiu, e Janie representa muitas de
suas informações biográficas",
afirma Lucy Anne Hurston, sobrinha da autora, que tinha três anos
quando a escritora morreu.
"Era difícil compreender que ela
era uma mulher fora do comum.
As negras não eram educadas para serem escritoras. Zora viajava
livremente, vivia fora das normas
da época."
Fraturas e "autopiedade"
"Seus Olhos Viam Deus" sintetiza boa parte do pensamento de
Neale Hurston, ao construir um
retrato dos negros que se afastava
da descrição -algo fantasiosa, a
seu ver- de que se constituíssem
num grupo solidariamente coeso,
depois de séculos de servidão na
América.
A autora não deixava de notar
as fraturas dessa comunidade.
Hurston expressaria seu desgosto, por exemplo, com relação ao
racismo entre negros, dos mulatos em relação a conterrâneos de
pele mais escura, que observara
numa de suas pesquisas antropológicas na Jamaica, em 1936.
Outra das características do livro intimamente ligadas a toda a
obra da autora refere-se à sua defesa da tomada de consciência individual em detrimento de protestos políticos coletivos.
Tais postulados a fizeram ser renegada pelos escritores negros ascendentes nos Estados Unidos
dos anos 30 e 40, que não consideravam sua produção suficientemente militante para aquele momento, a quem Hurston rebatia
ironicamente, dizendo não ser
"tragicamente negra".
Também de forma irônica, justamente sua distância do que classificava de "autopiedade" acabaria por lhe causar trajetória digna
de pena. Num intervalo de sete
anos, entre 1943 e 1950, passa de
pesquisadora e autora prestigiada
-chegando à capa da "Saturday
Review"- a empregada doméstica em Miami.
O ostracismo em que suas obras
entrariam a partir do início dos
anos 50 só teria fim depois de
1975, com a publicação de texto
de Alice Walker (de "A Cor Púrpura") sobre a descoberta do túmulo sem identificação -num
cemitério dedicado apenas a negros em Fort Pierce (Flórida)-
onde Hurston fora sepultada em
1960 ("conforme seu desejo", enfatiza Lucy).
Entre 1990 e 1995, "Seus Olhos
Viam Deus" vendeu cerca de um
milhão de exemplares, o que impulsionou a reedição de todos os
trabalhos mais significativos de
Hurston nos EUA, dando abertura a um novo ciclo de redescoberta da autora.
"Zora hoje não é analisada apenas dentro dos estudos afro-americanos ou femininos, mas juntamente com Faulkner, Hemingway e outros escritores que trouxeram contribuições à literatura
norte-americana", diz Lucy.
Embora tenha dedicado toda a
sua produção acadêmica, teatral e
literária à descrição do mundo
negro, rural e urbano, na América
do Norte e Central, Neale Hurston, sua dialética e seus personagens não estavam limitados a
condição social, sexo ou cor da
pele, apesar de viverem em situações e meios decorrentes desses
parâmetros. Como costumava
afirmar, "não pertenço à chorosa
escola negra que sustenta que a
natureza, de alguma forma, lhes
tenha dado um golpe baixo".
SEUS OLHOS VIAM DEUS (Their Eyes
Were Watching God). De: Zora Neale
Hurston. Editora: Record. Quanto: R$ 32
(224 págs.).
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