São Paulo, sexta-feira, 14 de outubro de 2005 |
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CARLOS HEITOR CONY Memórias póstumas de um carioca assassinado
Evidente : é quase um plágio de título conhecido. Brás
Cubas não morreu assassinado,
viveu em outra época, embora no
mesmo Rio. Teve delírios, pensou
em inventar um emplastro que
lhe desse fama e em ser ministro,
o que lhe daria honras. Não deixou para ninguém o legado da
miséria humana. O carioca que
será personagem desta crônica
era, em si mesmo, um exemplar
da nossa miséria: acreditou nos
outros, principalmente no governo e na opinião pública, que é
mais ou menos a mesmíssima coisa. Outro episódio com o mesmo personagem, na mesma situação, ou seja, até o momento em que ele acorda com a arma encostada em sua cabeça. As circunstâncias não favorecem uma tomada de consciência. Votara a favor da indagação do governo a respeito das armas. Ele achava que todo cidadão tem o direito de defender a própria vida, comprara um Colt calibre 32 (seis a menos do que o Taurus que o ameaçava), julgava-se protegido não apenas pelo Colt, mas pela decisão soberana do plebiscito que permitia a compra de armas, desde que cumpridas as formalidades legais. Apesar de ser carioca, ele cumprira as formalidades legais e podia viver e sobretudo dormir em paz, com a consciência duplamente tranqüila por ter uma arma e por estar dentro da lei. O diabo é que o outro também estava dentro da lei na questão da arma. Usava um direito dele e, se cometia um assalto, ação reprovável em todos os sentidos, não podia ser acusado de portar um objeto ilegal, a menos que a arma em questão fosse de uso exclusivo das Forças Armadas Não havia tempo nem condições para averiguar se a arma era ou não era exclusiva das Forças Armadas. Em princípio, aceitou que o Colt estivesse dentro da lei. O remédio era apelar para o mesmo direito e reagir. Enquanto procurava abrir a gaveta da mesinha de cabeceira, onde repousava a sua arma coberta pelo manto da legalidade, pensou em se congratular pelo fato de ser um bom cidadão, pacífico, cumpridor de suas obrigações, agindo sempre de acordo com as leis de seu país. Não teve tempo nem para pensar tudo isso nem para apanhar a arma. Levou na testa um único tiro, calibre 38. E morreu. Texto Anterior: Crítica: Meirelles se firma como o mais corajoso de sua geração Próximo Texto: Panorâmica - Política cultural: Filmes argentinos ganham edital Índice |
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