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A filosofia da tragédia
O filósofo Roberto Machado traça as relações entre o teatro grego e o pensamento alemão do século 19 e diz que a academia brasileira, ao adotar o "modelo da USP" de extrema especialização, quase "abdicou de pensar'
Roberto Price/Folha Imagem
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O professor de filosofia Roberto Machado,
em sua casa, no Rio |
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O novo livro do filósofo Roberto Machado, 64, "O Nascimento do Trágico - De Schiller
a Nietzsche" (Jorge Zahar Editor, 280 págs., R$ 38), dá o que
pensar: sobre a filosofia moderna e sua relação com a tragédia
grega, explicitamente, e, indiretamente, sobre a falta de criatividade de boa parte da filosofia
brasileira.
O professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) afirma que, na modernidade, a tragédia deixa de ser
apenas uma das espécies do
teatro e passa a ser central para
o modo como os filósofos entendem não só os dilemas do
homem moderno mas também
a própria constituição do mundo, do Ser.
"A questão da oposição, da
contradição de princípios é um
aspecto essencial dessa concepção ontológica da tragédia,
isto é, da concepção de que a
tragédia diz alguma coisa que
tem a ver com o próprio ser ou
com a totalidade dos entes, do
que é, do que existe", afirma.
O que ele diz ter "ousado" fazer neste trabalho, ao abarcar
um século de pensamento alemão, é tentar ser mais "extenso" que "profundo", marca segundo ele dos próprios filósofos estudados -e limite da filosofia brasileira.
Ele diz que o "modelo da
USP" dos anos 60 -de resto em
prática na maioria dos programas de pós-graduação em filosofia do país hoje- privilegia a
extrema especialização, o que
cria dificuldades para que se
pense criativamente. "Caímos
numa perspectiva de especialistas num período, num autor,
e até mesmo num livro."
FOLHA - Por que o trágico é um tema e um problema para os modernos? Por que se ocuparam dele a
partir de Kant, mas parece ter sido
um problema menor no período anterior, entre Descartes e Kant?
ROBERTO MACHADO - A posição
que defendo em "O Nascimento do Trágico" é que só na modernidade -entendida como o período que começa com
Kant- houve uma reflexão sobre o trágico. Para isso, valorizei a diferença entre uma "poética da tragédia" que, inaugurada por Aristóteles, se impôs até
o século 18 como um estudo
formal, analítico e classificatório da poesia, e uma "filosofia
do trágico" que, formulada por
pensadores como Schelling,
Hegel, Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche, elaborou
uma reflexão sobre a essência
do trágico a partir do conteúdo
da tragédia.
Minha preocupação foi mais
apresentar o "como" do que o
"porquê" dessa transformação.
Tentei mostrar que isso se deve
muito a Kant. Não que ele tenha sido um pensador do trágico, longe disso, mas sim que, logo após sua terceira "Crítica",
onde se encontra a estética, que
analisa o belo e o sublime, Schiller, que foi um grande kantiano, retomou a teoria do sublime e, a partir dela, pensou o
trágico.
FOLHA - Dá para dizer que o que
unifica esses pensadores é que neles
há sempre dicotomias, ao mesmo
tempo que não é em todos que há
dialética?
MACHADO - Exatamente. A
idéia que expus é que o trágico,
a partir de Schelling, é sempre
pensado ontologicamente. Mas
fui além disso, defendendo que
a questão da oposição, da contradição de princípios é um aspecto essencial dessa concepção ontológica da tragédia, isto
é, da concepção de que a tragédia diz alguma coisa que tem a
ver com o próprio ser, com a totalidade do que é, do que existe.
Trata-se, portanto, sempre
de princípios ontológicos que
estão numa atitude antagônica,
uma atitude de oposição. Acontece, porém, que esse antagonismo pode levar a uma harmonia, a um reconhecimento, a
uma reconciliação, como é o caso em Schelling, Hegel e no primeiro Hölderlin, mas também
pode levar a uma afirmação da
dualidade ou da oposição, sem
reconciliação dialética.
FOLHA - Pode-se dizer que o pensamento sobre o trágico é fundamental para todos esses filósofos, ou ele
está em Hegel, por exemplo, mas
não de maneira central?
MACHADO - É possível detectar
duas posições a esse respeito.
Em Schiller e Hölderlin, por
exemplo, que são mais poetas e
dramaturgos do que filósofos,
há uma visão do trágico que faz
parte da própria visão de mundo que eles têm. Já em Hegel, o
trágico é um momento de um
processo histórico que vai além
do trágico. Ele situou a visão
trágica numa perspectiva histórica. Isso começa a mudar
com Schopenhauer, pois a respeito dele é possível falar já de
uma visão de mundo trágica.
Essa relação entre trágico e
tragédia vai explodir completamente em Nietzsche, quando
ele elabora uma visão do trágico independente do teatro e da
tragédia. Por isso, considero
Nietzsche o ápice de todo esse
processo de formação de uma
visão trágica do mundo. No último período de sua filosofia,
ele dirá: "Sou o primeiro filósofo trágico; os próprios gregos
ainda foram moralistas". Isso
significa um deslocamento da
temática do trágico do campo
da arte para a própria filosofia
como uma forma de pensamento que elabora uma visão
trágica do mundo.
Enquanto Schiller criou o
trágico como um conflito entre
os instintos e a liberdade, conflito que acarreta a afirmação
da liberdade moral, apesar das
condições mais adversas em
que o ser humano se encontre,
como em sua peça "Maria
Stuart", Nietzsche usa a visão
trágica do mundo como alternativa ética. O trágico, para ele,
se torna uma afirmação integral da vida para além das oposições morais de bem e mal.
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