São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 2006

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A filosofia da tragédia

O filósofo Roberto Machado traça as relações entre o teatro grego e o pensamento alemão do século 19 e diz que a academia brasileira, ao adotar o "modelo da USP" de extrema especialização, quase "abdicou de pensar'

Roberto Price/Folha Imagem
O professor de filosofia Roberto Machado, em sua casa, no Rio

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O novo livro do filósofo Roberto Machado, 64, "O Nascimento do Trágico - De Schiller a Nietzsche" (Jorge Zahar Editor, 280 págs., R$ 38), dá o que pensar: sobre a filosofia moderna e sua relação com a tragédia grega, explicitamente, e, indiretamente, sobre a falta de criatividade de boa parte da filosofia brasileira.
O professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) afirma que, na modernidade, a tragédia deixa de ser apenas uma das espécies do teatro e passa a ser central para o modo como os filósofos entendem não só os dilemas do homem moderno mas também a própria constituição do mundo, do Ser.
"A questão da oposição, da contradição de princípios é um aspecto essencial dessa concepção ontológica da tragédia, isto é, da concepção de que a tragédia diz alguma coisa que tem a ver com o próprio ser ou com a totalidade dos entes, do que é, do que existe", afirma.
O que ele diz ter "ousado" fazer neste trabalho, ao abarcar um século de pensamento alemão, é tentar ser mais "extenso" que "profundo", marca segundo ele dos próprios filósofos estudados -e limite da filosofia brasileira.
Ele diz que o "modelo da USP" dos anos 60 -de resto em prática na maioria dos programas de pós-graduação em filosofia do país hoje- privilegia a extrema especialização, o que cria dificuldades para que se pense criativamente. "Caímos numa perspectiva de especialistas num período, num autor, e até mesmo num livro."  

FOLHA - Por que o trágico é um tema e um problema para os modernos? Por que se ocuparam dele a partir de Kant, mas parece ter sido um problema menor no período anterior, entre Descartes e Kant?
ROBERTO MACHADO
- A posição que defendo em "O Nascimento do Trágico" é que só na modernidade -entendida como o período que começa com Kant- houve uma reflexão sobre o trágico. Para isso, valorizei a diferença entre uma "poética da tragédia" que, inaugurada por Aristóteles, se impôs até o século 18 como um estudo formal, analítico e classificatório da poesia, e uma "filosofia do trágico" que, formulada por pensadores como Schelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche, elaborou uma reflexão sobre a essência do trágico a partir do conteúdo da tragédia. Minha preocupação foi mais apresentar o "como" do que o "porquê" dessa transformação. Tentei mostrar que isso se deve muito a Kant. Não que ele tenha sido um pensador do trágico, longe disso, mas sim que, logo após sua terceira "Crítica", onde se encontra a estética, que analisa o belo e o sublime, Schiller, que foi um grande kantiano, retomou a teoria do sublime e, a partir dela, pensou o trágico.

FOLHA - Dá para dizer que o que unifica esses pensadores é que neles há sempre dicotomias, ao mesmo tempo que não é em todos que há dialética?
MACHADO
- Exatamente. A idéia que expus é que o trágico, a partir de Schelling, é sempre pensado ontologicamente. Mas fui além disso, defendendo que a questão da oposição, da contradição de princípios é um aspecto essencial dessa concepção ontológica da tragédia, isto é, da concepção de que a tragédia diz alguma coisa que tem a ver com o próprio ser, com a totalidade do que é, do que existe. Trata-se, portanto, sempre de princípios ontológicos que estão numa atitude antagônica, uma atitude de oposição. Acontece, porém, que esse antagonismo pode levar a uma harmonia, a um reconhecimento, a uma reconciliação, como é o caso em Schelling, Hegel e no primeiro Hölderlin, mas também pode levar a uma afirmação da dualidade ou da oposição, sem reconciliação dialética.

FOLHA - Pode-se dizer que o pensamento sobre o trágico é fundamental para todos esses filósofos, ou ele está em Hegel, por exemplo, mas não de maneira central?
MACHADO
- É possível detectar duas posições a esse respeito. Em Schiller e Hölderlin, por exemplo, que são mais poetas e dramaturgos do que filósofos, há uma visão do trágico que faz parte da própria visão de mundo que eles têm. Já em Hegel, o trágico é um momento de um processo histórico que vai além do trágico. Ele situou a visão trágica numa perspectiva histórica. Isso começa a mudar com Schopenhauer, pois a respeito dele é possível falar já de uma visão de mundo trágica.
Essa relação entre trágico e tragédia vai explodir completamente em Nietzsche, quando ele elabora uma visão do trágico independente do teatro e da tragédia. Por isso, considero Nietzsche o ápice de todo esse processo de formação de uma visão trágica do mundo. No último período de sua filosofia, ele dirá: "Sou o primeiro filósofo trágico; os próprios gregos ainda foram moralistas". Isso significa um deslocamento da temática do trágico do campo da arte para a própria filosofia como uma forma de pensamento que elabora uma visão trágica do mundo.
Enquanto Schiller criou o trágico como um conflito entre os instintos e a liberdade, conflito que acarreta a afirmação da liberdade moral, apesar das condições mais adversas em que o ser humano se encontre, como em sua peça "Maria Stuart", Nietzsche usa a visão trágica do mundo como alternativa ética. O trágico, para ele, se torna uma afirmação integral da vida para além das oposições morais de bem e mal.


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