São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 2006

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"Abdicamos de pensar filosoficamente"

Para Roberto Machado, país privilegiou especialização extrema e "o que mais se precisa na filosofia brasileira é de coragem'

Professor da UFRJ diz que não existe nenhum grande filósofo na história "que possa ser reduzido à condição de especialista"

DA REPORTAGEM LOCAL

A seguir, Roberto Machado fala sobre a filosofia no Brasil e diz que, "em geral, abdicamos de pensar filosoficamente para fazer história da filosofia". (RC)  

FOLHA - O sr. concorda que parece haver pouca criatividade filosófica no Brasil? Qual é a explicação possível para isso?
ROBERTO MACHADO
- A pergunta é boa, mas exigiria uma resposta que não sei se sou capaz de dar. De todo modo, o que posso dizer é que o trabalho para esse livro foi muito formador. Porque fui capaz de comprovar, com relação a mim mesmo, uma coisa que considero uma deficiência dos estudos filosóficos no Brasil. Caímos numa perspectiva de especialistas num período, num autor, e até mesmo especialistas num livro.
O que me chama a atenção é que em geral as pessoas restringem o seu universo ao daquele filósofo eleito como um paradigma do que seja filosofar. E não se chega nem ao estudo daqueles com os quais ele tem uma relação profunda.
Uma grande lição que comprovei com esse estudo é que não se começa do nada. Não existe tábula rasa -sempre se pensa a partir do que outros pensaram. O interessante para mim, na leitura desses documentos sobre a tragédia e o trágico, foi a demonstração de que é sempre com pequenas reapropriações, com pequenas torções que, dentro de uma região de idéias já produzidas por outros, se chega a um pensamento novo, diferencial. Um bom exemplo disso é de como Schelling retoma a teoria do sublime de Schiller -profundamente marcada por Kant- numa perspectiva metafísica.
Creio que uma das dificuldades da filosofia brasileira é que em geral abdicamos de pensar filosoficamente para fazer unicamente história da filosofia. A filosofia brasileira, mais ou menos até a década de 60, me parece ter sido marcada por um ensino doutrinário, aquele que privilegia um sistema filosófico como verdadeiro, o expõe como um conjunto de teses e situa, a partir dele, os outros sistemas como erro, desvio, ignorância.
Ora, com a importância que adquiriu a pós-graduação no Brasil, a partir do modelo da USP, para combater esse modelo, representado principalmente pelo tomismo, as pessoas se preocuparam menos em fazer filosofia do que em saber filosofia, em assimilar com rigor a filosofia dos outros. O conhecimento dos filósofos é importante, e até mesmo indispensável, mas a filosofia não pode ser reduzida a isso. O conhecimento da história da filosofia é uma condição necessária, mas não uma condição suficiente para que alguém se torne filósofo.

FOLHA - Esse modelo da USP era explícito, não é?
MACHADO
- Sim. É muito fácil você encontrar um filósofo que diga: "Não sou filósofo; sou historiador da filosofia". Defende-se o rigor, mas ousa-se pouco. O que mais se precisa na filosofia brasileira é de coragem. Esse livro que escrevi é mais temático do que monográfico.
Tentei com isso dar uma contribuição, dentro de minhas possibilidades, para a superação dessa fase que, para alguns, já está em andamento no Brasil. Ele não é um livro de especialista. Desses autores todos que estudei, aquele com quem eu tenho mais convivência é Nietzsche. Os outros não. Certamente foi incômodo saber que falava sobre um filósofo que um colega meu estuda há 40 anos. Mas foi uma opção que fiz. Minha ambição intelectual hoje é ser mais extenso do que profundo. Porque senão você aprofunda muito um detalhe e perde a dimensão do geral, tornando-se incapaz de fazer inter-relações conceituais.

FOLHA - Os grandes filósofos da história foram tão extensos quanto profundos?
MACHADO
- Exatamente. Não existe nenhum grande filósofo que possa ser reduzido à condição de especialista. Tome Platão, Aristóteles, Kant. Todo grande filósofo se aventurou em muito mais áreas do que compete a um especialista.


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