São Paulo, quarta-feira, 14 de novembro de 2007

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Luandino quebra seu silêncio

Convidado da Balada Literária, angolano diz que recusou Prêmio Camões pois se achava "escritor morto'

Autor angolano prepara uma trilogia, reconhece a influência de Guimarães Rosa em sua obra e cita ainda ecos de Jorge Amado

DA REPORTAGEM LOCAL

Pode-se considerar singular a participação do angolano José Luandino Vieira, no dia 18, na Balada Literária. O autor do recém-lançado "A Cidade e a Infância" (Companhia das Letras; R$ 36, 136 págs.), livro de contos dos anos 1950, é um tanto recluso. Segundo sua assessoria, o escritor vive num mosteiro, de onde redigiu à mão as respostas à entrevista da Folha abaixo. Essas foram depois transcritas e enviadas por e-mail à reportagem.
Foi o mesmo Luandino que, em 2006, recusou 100 mil euros (cerca de R$ 254 mil) do Prêmio Camões, alegando "motivos íntimos e pessoais".
À Folha, Luandino disse que declinou a honraria por se considerar, à época, um "escritor morto". "Por que haveria de ser premiado um escritor em silêncio, que não entregava a seus leitores um simples escrito havia 35 anos? Não me parece que pudesse receber o prêmio sabendo o elevado número e a qualidade de obras de tantos autores de língua portuguesa." Leia trechos da entrevista. (EDUARDO SIMÕES)

 

FOLHA - Logo após a recusa do prêmio o senhor anunciou uma trilogia, "De Rios Velhos e Guerrilheiros"...
LUANDINO VIEIRA-
A decisão de uma trilogia foi tomada talvez para quebrar um pouco mais cedo aquele silêncio. Originalmente estava pensado como um único romance, uma longa travessia da vida, em fatos e memórias de um guerrilheiro na luta e libertação de Angola. O que seria o meu modo de homenagear natureza e povo que a levaram a cabo com sucesso. O segundo volume está quase pronto. O terceiro, em fase de escrita. Porém sempre regressa, manhosamente, a tentação de os unificar como estava guardado em minha cabeça.

FOLHA - Em "A Cidade e a Infância", a vida nos musseques (favelas) de Luanda está em destaque. Após 50 anos, o retrato permanece atual?
VIEIRA-
O que é atual, e infelizmente multiplicado, é essa presença na cidade: seus musseques. Quaisquer que sejam os novos nomes que se lhe atribuam, subúrbios, favela etc. A presença da pobreza, da miséria, da vida em condições precárias de habitação, saúde, higiene. Enfim, os padrões mínimos que o desenvolvimento do mundo já permitiria. E não são ainda usufruto de quem tem de viver naquelas condições e tanto contribuiu, com sua vida e seu trabalho, para esse desenvolvimento. Não é justo.

FOLHA - Qual o papel da tradição oral em sua obra?
LUANDINO VIEIRA-
É fulcral. Comecei a escrever também por ouvir contar muitas histórias nos serões, à porta das casas, na infância e na adolescência. Depois, na escola, em nossas brincadeiras era o intercâmbio de histórias. Tudo isso marcou o meu trabalho de escritor, em opções estilísticas, em formas de comunicar, obrigando-me a incorporar, consciente e inconscientemente, na linguagem literária, traços da oralidade. Creio que essa presença ficará sempre no que escrever. Narro mais do que escrevo.

FOLHA- A identidade angolana ainda é central em sua obra?
VIEIRA-
Num país jovem como Angola, um Estado que não tem meio século, como deixar de ser? É para seus cidadãos. Em permanente construção, diálogo e confronto com outras identidades, tudo ampliado pela inclusão em espaços regionais, globais. Felizmente é assunto de presença permanente, mesmo que em conflitos e contradições que, à primeira vista, podem parecer perda de tempo e energia, mas que a necessidade histórica justifica.

FOLHA - Seus livros foram em parte escritos na prisão, quando lutou pela independência de Angola. O que representava escrevê-los?
VIEIRA-
Representavam um modo de resistência à desagregação psicológica e espiritual. E um modo de sobrevivência espiritual, trabalhando e retrabalhando o material acumulado na memória. Porque nos impunham um viver em ambiente de desertificação intelectual. Para mim, também de esclarecimento pessoal, avaliação e revisão permanentes dos motivos de minha presença naquelas prisões e participação no movimento de libertação no meu país. Nunca esqueci que era branco, instruído, classe média.

FOLHA - O senhor identifica interseções entre sua obra e a de Guimarães Rosa, em especial o caráter lúdico e reinvenção de linguagem de "Luuanda" e "Primeiras Estórias".
VIEIRA-
Com Guimarães Rosa aprendi muito. O caráter lúdico, menos. Mas e sobretudo a liberdade para criar uma linguagem literária a partir de materiais de outras linguagens. Aprendi que essa liberdade tem sempre em si o conhecimento, e não a ignorância, da língua em que escreve. E que implica ainda uma grande responsabilidade que só pode ser exclusivamente assumida por quem escreve. Não adiantam defesas acadêmicas ou outras. Seu resultado é sempre um risco, uma aposta. Mas foi isso que o bom professor Guimarães Rosa ensinou a um mau aluno.
Com Jorge Amado aprendi também, aprendi a ver o mundo dos oprimidos, dos explorados. Ele me ajudou em minha formação pessoal e literária com a teimosa procura ou presença da beleza, da poesia, mesmo lá onde ela não pode morar, em meio a condições subumanas de existência. E outros como Lins do Rego, Erico e Clarice. Tantos outros que li da literatura mundial e de todos sou tributário. Não só de língua portuguesa. Sou escritor porque primeiro, fui leitor, lia tudo o que me vinha às mãos.


informações: www.baladaliteraria.org

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