São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 2000

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ARTIGO

"A Alma do México" retrata paradoxo de uma cultura



CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A convite do Conaculta (Conselho Nacional de Cultura e Artes do México), filmei há alguns meses as apresentações dos 12 programas de televisão intitulados "A Alma do México", uma bela e intensa viagem por três milênios de cultura mexicana. A característica mais notável dessa cultura é sua continuidade.
A cultura se dá na história. Ela a anuncia, a atualiza, a recorda, a anuncia novamente. O México já sofreu rupturas históricas terríveis. A derrota do mundo indígena, a conquista espanhola, a colônia, a revolução da independência. Anarquia, tirania, desmembramentos territoriais e invasões estrangeiras no século 19. Uma grande revolução, a primeira do século 20, revolução/revelação de uma identidade complexa e inclusiva. E, como consequência, um processo de modernização acelerado e desigual.
Cada lado dessa moeda tem sua cruz. Cada águia, seu sol. O mundo indígena não se deixou vencer. Reapareceu e perpetuou-se de múltiplas maneiras sincréticas, religiosas e artísticas. A conquista provocou a contraconquista: o surgimento de um mundo mestiço de perfis definidos. A colônia recebeu da coroa leis protetoras do indígena e da justiça agrária.
Entretanto "a lei se obedece, mas não se cumpre". A formação de latifúndios e grupos políticos dominados por caciques desafia o desejo de justiça de Las Casas, Quiroga, Vitoria e Suárez.
A Revolução da Independência dita leis esclarecidas para uma realidade sombria. Cria-se um vazio político entre o país real e o país legal. Esse vazio é preenchido às vezes pela anarquia, outras vezes pela tirania. E nesse vaivém perdemos metade de nosso território. Benito Juarez, triunfante sobre a intervenção e o império, cria a fórmula de nossa saúde: desenvolvimento com democracia. Porfírio Diaz a perverte: desenvolvimento com ditadura.
A revolução não apenas quebra a espinha da ditadura, como rompe as barreiras do isolamento mexicano. Revela a totalidade do passado, confere vida e liberdade à indústria, ao campo e à criação artística. Mas propõe um pacto político fatal. Desenvolvimento, educação, estabilidade, progresso -mas sem democracia. Em 1968, uma geração educada pela revolução nos ideais da liberdade os aprendeu primeiro na sala de aula e depois os exigiu nas ruas -e pagou-os com a vida.
Apesar disso a transformação política do país era inevitável. O conteúdo transbordou para fora do continente. A sociedade transbordou do governo e terminou por reunir a realidade econômica e social à democracia política.
Longo e duro combate feito de rupturas, de fracassos e êxitos, de retrocessos e avanços. De lutas populares incansáveis. Essa história de rupturas contrasta de maneira poderosa com a continuidade cultural que não apenas não sofreu rupturas como as reparou. Por isso cada imagem de "A Alma do México" é uma prova luminosa da extraordinária capacidade da cultura mexicana de superar a desgraça, tecendo uma malha indissolúvel de formas, cores, palavras, sonhos e desejos que dão piso e teto à nossa turbulenta história política.
Das construções solares das culturas pré-hispânicas, ao longo do processo de mestiçagem, até a formação da nação a partir da cultura, o México ganhou uma identidade. Hoje, donos da identidade, enfrentamos o desafio da diversidade. Chegamos ao século 21 com os desafios de aprofundar a identidade por meio do respeito pela diversidade política, religiosa, racial, cultural e sexual. Destacam-se os movimentos contra a intolerância homofóbica e a favor dos direitos da mulher e seu pleno direito de ser dona de seu próprio corpo. Destaca-se a afirmação do processo educacional como prioridade. Mas também é prioritária, por meio da cultura, a afirmação do capital humano como base do desenvolvimento justo. Não existe globalidade que valha sem localidade que sirva.
As imagens de nossa cultura que vemos em "A Alma do México" são muito belas. Creio que nunca antes as vimos tão próximas, tão completas -as 17 colossais cabeças olmecas!-, tão belas quanto nessa série para a TV.
Por isso eu quis recordar, em todas as apresentações que fui convidado a fazer, que cada imagem, cada obra, cada palavra de nossa cultura nasce do trabalho dos homens e das mulheres do México. Eles, nossos homens e mulheres, são os protagonistas dessa série para a televisão. Eles nos fazem recordar que a beleza de nossa cultura às vezes destaca o paradoxo de sua realidade.
A cultura rica de um povo pobre. A riqueza do mito diante da pobreza do povo.
A generosidade de uma civilização iluminada diante da injustiça e da falta de generosidade dos sistemas autoritários mexicanos.
Hoje, quando finalmente a ordem vertical autoritária se transforma em ordem horizontal democrática, concluo a apresentação de "A Alma do México" com uma dedicatória desse longo, prodigioso, riquíssimo trajeto de nossa cultura aos jovens de hoje, à juventude que terá que herdá-la, mantê-la e enriquecê-la.
Mas, desta vez, aliando cultura e democracia, cultura e justiça.


O escritor Carlos Fuentes escreve mensalmente na Ilustrada
Tradução Clara Allain


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