São Paulo, terça-feira, 14 de dezembro de 2004

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CRÍTICA/DUO ASSAD

O que se fez para se chegar aonde se está

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Iô achus "rmãos Assad uj mlhorij do mund'!" E quem somos nós para discordar? Era Nadja Salerno-Sonnenberg falando, com seu simpaticíssimo e inimitável sotaque, de cima do palco da Sala São Paulo. Lado a lado com os melhores do mundo, a violinista já tinha tocado uma primeira parte inteira do concerto; e a essa altura ninguém mais tinha dúvida de que ela tinha o direito de falar assim. Não só pelo que eles tocam, mas pelo que ela mesma faz, com a autoridade natural de uma artista em pleno domínio da música, o que também significa pleno domínio de si.
Nascida em Roma, criada nos EUA, catapultada para a fama no início da década de 80, quando venceu o concurso internacional Naumburg e começou a gravar discos -aparecendo nas capas com roupa de roqueira, o que na época era uma novidade total no mundo clássico-, Salerno-Sonnenberg está hoje naquele ponto da carreira quando, em retrospecto, tudo parece ter feito sentido para se chegar aonde se está. Inclusive na música: tudo agora tem a naturalidade da maestria, tudo é ao mesmo tempo de uma sofisticação muito complexa e de uma simplicidade elementar, porque nada poderia ser de outro modo.
Em cena, ela é irresistível, com sua informalidade e bom humor. Uma mistura de Jascha Heifetz e Marisa Orth, desfiando proezas de articulação e dinâmica, em contraponto com a graça mais livre.
Dizer que Sérgio e Odair Assad são parceiros à altura parece pouco. Eles vêm tocando juntos com a "madrinha" americana desde 1998, como fica óbvio desde o começo e mais óbvio ainda ao longo do concerto. Ou deveria ficar: quem estava no mezanino na primeira parte ganharia muito correndo para os poucos lugares vazios da platéia, na segunda, porque as vastidões da Sala São Paulo simplesmente não fazem justiça à música de câmara, mesmo discretamente amplificada. Mais de perto, tudo tinha mais cor, detalhe, nuance, sombra e luz.
O que valorizava muito o programa. Era domingo à tarde, e ninguém reclamaria de uma seleção tão leve: uma suíte de peças, entre aspas, "ciganas" de Sérgio Assad, quatro Piazzollas, um pot-pourri de Charlie Chaplin (temas de "Luzes da Cidade" [1931] e "Em Busca do Ouro" [1925]), uma versão da "Sonata BWV 1016" de Bach, as "Danças Folclóricas Romenas" de Béla Bartók, "Três Danças Argentinas" de Ginastera e a estréia paulista dos "Three Sketches" de Clarice Assad (filha de Sérgio, autora também de um "Concerto para Violino e Orquestra" recentemente estreado por Salerno-Sonnenberg).
Um ponto alto: as danças de Ginastera (incluindo a "Danza de la Moza Dañosa", moça que ganhou novos ares "nocivos" no violino). Outro: os "Sketches". Algum tempo atrás, uma compositora como Clarice Assad seria mastigada pelas militâncias da vanguarda (com argumentos justos, naquele momento). Hoje, está livre para escrever essa música francamente tonal, metabolizando Piazzolla e Gismonti num registro próprio, na medida competente e confiante de suas ambições.
Teria sido bom escutar Salerno-Sonnenberg tocando algo que demandasse mais de si? Claro. Mas quem não viu que ela extrai o máximo de música de uma colcheia que seja? Assads idem.
Quando os irmãos fizeram o seu número chapliniano no bis, tocando os dois juntos num violão só, acompanhando virtuosisticamente a virtuose como se não fosse nada, a tarde já estava ganha e a platéia de alma limpa. Foi um desses concertos que deixam a gente feliz por cinco dias, olhando para o céu de verão e abençoando as oportunidades. Tudo até parece ter feito sentido para se chegar aonde se está.


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