São Paulo, quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

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MODERNISMO

Evento em SP com palestras, debates e shows reúne intelectuais de vários países para discutir o legado de Oswald

Antropofagia devora a atualidade no EIA!

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Intelectuais de vários países reúnem-se, em São Paulo, para discutir o legado e a atualidade da antropofagia de Oswald de Andrade. Em 1928, no "Manifesto Antropófago", o escritor modernista propôs que a cultura brasileira se renovasse a partir da assimilação crítica de idéias e modelos estrangeiros.
Dirigido e concebido pelo diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, o EIA! (Encontro Internacional de Antropofagia) acontece de hoje a sábado, no Sesc Pompéia. A programação inclui palestras, debates, shows, leituras teatrais e uma instalação do artista plástico Aguilar.
Em entrevista à Folha, o norte-americano Christopher Dunn -professor da Tulane University de Nova Orleans e autor do livro "Brutality Garden: Tropicália and the Emergence of a Brazilian Counterculture"- antecipa aspectos da palestra que fará na sexta-feira. E defende a validade da antropofagia na violenta era Bush. Leia a seguir.

 

Folha - Como seus alunos encaram o conceito da antropofagia?
Christopher Dunn -
A metáfora da antropofagia é plurivalente, com múltiplos significados. A noção mais básica se refere ao procedimento de deglutir ou apropriar-se criticamente de produtos culturais ou idéias do outro, do estrangeiro dos centros metropolitanos, para então criar algo novo com a marca da singularidade de sua cultura. É um procedimento que rejeita a imitação, por um lado, e a rejeição xenófoba, por outro. Em geral, os estudantes norte-americanos ficam entusiasmados com esse conceito e suas possíveis aplicações no contexto local.

Folha - A antropofagia ainda é tão válida quanto era no final dos anos 20?
Dunn -
Acho que a antropofagia continua a ser um conceito atual para artistas que lidam com questões da diferença, mistura de linguagens, intertextualidade e multiculturalismo. Estamos vivendo um momento terrível, com a ascensão do neoimperialismo criminoso dos Estados Unidos e o crescimento de fundamentalismos religiosos, que Oswald de Andrade teria chamado de "baixa antropofagia". Essa precisa ser enfrentada com a antropofagia generosa e utopia de Oswald.

Folha - Como se daria esse enfrentamento?
Dunn -
Se aceitamos que a antropofagia é uma estratégia e práxis anticolonialista e antiimperialista, temos que atualizar suas lições para os dias atuais. Não estou sugerindo que a antropofagia seja a salvação, mas não deixa de ser uma metáfora sugestiva para lidar com as formas de "catequese" explícitas no projeto imperialista norte-americano, que hoje procura, cinicamente, "levar a democracia" ao Oriente Médio.

Folha - Você poderia fazer uma sinopse de sua palestra no encontro?
Dunn -
Minha apresentação trata do conceito da antropofagia no modernismo brasileiro e como ele foi articulado por Oswald em relação a outras correntes que também elegeram o índio como figura representativa. Depois explico como e porque essa metáfora surgiu de novo como conceito organizador de vários projetos artísticos ligados ao momento tropicalista, nos anos 60.
Finalmente, vou falar sobre a antropofagia no contexto da globalização, refletindo sobre o conceito de "arrastão" desenvolvido pelo tropicalista Tom Zé para articular uma prática e uma ética enquanto músico brasileiro contemporâneo.

Folha - Você acha que Tom Zé recriou a antropofagia?
Dunn -
Em vez do antropófago, do índio canibal, Tom Zé propõe a figura do andróide, o trabalhador analfabeto, terrivelmente explorado como mão-de-obra barata e descartável. Para Tom Zé, esses andróides podem ter "defeitos de fabricação" que possibilitam a resistência por meio de atos subversivos de criar, pensar, dançar e sonhar, enquanto fazem "arrastão" no legado cultural do qual são excluídos. Acho muito interessante essa metáfora, porque ela sugere explicitamente a posição social da figura subalterna, que a metáfora do antropófago tende a ocultar.


Carlos Calado é jornalista e crítico, autor de "A Divina Comédia dos Mutantes", entre outros livros.

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