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CONTARDO CALLIGARIS
"Inocência" e as mesas de bar
Se não sabemos mais sonhar com a vida como deveria ser, podemos abraçá-la como ela é
NO SÁBADO passado, em São
Paulo, fui para o Espaço dos
Satyros, na praça Roosevelt,
e assisti a "Inocência", de Dea Loher,
com direção de Rodolfo García Vasquez. A peça fica em cartaz até o dia
18 e volta em janeiro. A montagem é
surpreendente pela elegância das
soluções cênicas e pela performance
de todos os atores.
O texto de Dea Loher é uma meditação (teatral e engraçada: nada de
longos discursos) sobre a idéia, própria aos nossos dias, de que a vida
não faz sentido. Misteriosamente, a
montagem dos Satyros opera um
pequeno milagre: ela revela, no pouco sentido do mundo, mil razões para amar a vida. Nisso, ilustra uma
moral que aprecio muito: talvez não
consigamos mais sonhar com a vida
como deveria ser, mas podemos
abraçar a vida como ela é.
Na saída do teatro, é de praxe parar numa mesa de bar naquele trecho da praça Roosevelt (escolha entre o espaço dos Satyros, o dos Parlapatões e o bar-antiquário Papo, Pinga e Petisco). A animação da rua responde à inquietude levantada pela
peça: talvez a vida não faça sentido,
mas nos resta viver. No mínimo, resta-nos a mesa do bar.
Sei que é pouco: a quem se sente
abandonado pelas grandes causas
comuns, a mesa do bar e sua conversa parecem pálidos reflexos da sociedade desejada. Mas, filosofando:
se, por falta de transcendências, devemos encontrar sentido na imanência, é melhor se acostumar a dar
relevância às coisas pequenas de cada dia.
Na mesa do bar, a gente dá "uma
relaxada": encontra, na facilidade do
convívio (ou do "convício", entre cigarros e cervejas), um amparo contra as frestas e falhas mais dolorosas.
Considere seus companheiros de
mesa: todos parecem espirituosos e
bem-humorados.
Mas há um que, uma vez de volta
em casa, perseguirá, solitário, na internet, fantasias sexuais que ele
nunca se permite viver; há o casal
que se deitará sem se abraçar; há outro que não quer ir embora porque a
perspectiva da solidão o desespera;
há outra que consegue ironizar uma
perda cuja lembrança, quando ela
estiver sozinha, de novo a arrasará.
E por aí vai.
Não se trata de um "fazer de conta": existe uma divisão subjetiva sem
a qual viver seria difícil. Já imaginou
um dia inteiro na intensidade alarmante de um diálogo com seu melhor amigo, com um terapeuta ou
até consigo mesmo, numa noite sem
sono?
A única dificuldade com as mesas
de bar é que, às vezes, o amparo se dá
às custas dos ausentes, a torcida do
"outro" time, os "veados", os negros,
etc. (a mesa de bar pode ter uma proximidade perigosa com as mesas da
infausta cervejaria onde começou o
nazismo).
Mas, fora isso, as mesas de bar e as
rodas de padaria são uma modesta e
frágil presença da vida social concreta: elas mantêm, ao menos, a ilusão
de que os outros existem para nós e
nós existimos com eles.
Falando em mesa de bar, na esquina de meu consultório tem um café,
que, até pouco tempo atrás, tinha
três mesinhas na rua. Era o lugar onde eu almoçava; era também o lugar
onde as pessoas do bairro se encontravam, e a conversa rolava ao lado
da banca de jornais, na frente do
ponto de táxi.
Ali, vendedores ambulantes paravam entre as mesas. Meninos e meninas de rua pediam aos clientes um
refrigerante e um salgado. Em suma,
casas e apartamentos se prolongavam para um pouco além das portas
trancadas.
Um belo dia, veio um caminhão da
prefeitura; disseram que a ocupação
da calçada não era legal e levaram
embora (triste troféu) as mesinhas e
as cadeiras de metal branco. "Quer
regularizar? Faça um toldo retrátil
novo." Custo: R$ 10 mil, impossível
para o café da esquina.
Acho ótimo regulamentar o uso
das calçadas. Mas governar, ao meu
ver, deveria ser a arte de estimular a
(frágil) comunidade que existe.
Fazer o quê, deixar tudo na bagunça? Não, mas um funcionário da prefeitura poderia ter chegado no café
da esquina (e em centenas de outros
bares da cidade) e dito, por exemplo:
a gente vai tornar São Paulo mais
bonita, é preciso regularizar os toldos, a administração previu sua dificuldade e obteve um empréstimo do
BNDES. Você vai poder pagar seus
R$ 10 mil ao longo de cinco anos, a
juros razoáveis.
Para que isso acontecesse, teria sido suficiente que os governantes
pensassem primeiro na vida concreta da gente, que não é nada -pode
ser apenas uma mesa de bar-, mas,
num mundo com pouco sentido, é o
que temos.
ccalligari@uol.com.br
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