São Paulo, sexta-feira, 14 de dezembro de 2007 |
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Cinema/estréias - Crítica/"Império dos Sonhos" David Lynch filma a crise do espetáculo Original e perturbador, novo longa-metragem do diretor de "Estrada Perdida" aborda o vazio do mundo do entretenimento
INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA Em David Lynch é sempre a imagem que está em causa. Pelo menos tem sido assim desde "Estrada Perdida". E colocá-la em causa implica saber se ela ainda pode constituir uma real experiência ao espectador. "Império dos Sonhos" trabalha todos os elementos que nos vinculam a essas imagens, desde a moça que, diante de uma tela de TV, chora copiosamente até a atriz que se prepara para fazer seu filme, passando, é claro, pelo diretor e suas palavras de exortação. Mas esse universo confortável logo é abalado pela estranha mulher polonesa que, a pretexto de dar os parabéns à atriz (Laura Dern) pelo novo papel, perturba tudo: seu discurso desmente o roteiro (algo terrível acontecerá, embora não esteja no roteiro), sua presença distorce o espaço (tudo na casa parece sair de proporção) e o tempo (com o dedo em riste, ela remete a outro momento). Passamos aos ensaios e as previsões de catástrofe parecem se confirmar. Alguém descobre que o filme a ser rodado é um "remake". Mas um "remake" muito particular, pois de um filme que nunca terminou de ser filmado devido a tudo de terrível que desencadeou. E o mistério se estabelece. Pois no cinema de Lynch existe sempre um elo muito forte com nossa experiência, como se nossa percepção devesse ser atraída por algo que lhe é familiar, para depois ser desorientada. Nisso existem dois trabalhos a ser notados: o das cores e o das pausas. Nenhum dos dois busca o registro realista, embora não se afastem dele. É como se devessem permanecer ao lado do real, estabelecendo uma ligeira distinção. As cores são um pouco carregadas demais. As pausas, com frequência um pouco mais longas do que em filmes normais. Ambos produzem um tempo e um espaço tensionados, propícios às mutações que virão. Riso e passividade No entanto, o signo maior do estranhamento que Lynch impõe em "Império dos Sonhos" é o espetáculo dos coelhos. Trata-se, na verdade, de humanos com cabeça de coelhos. Eles pouco falam e pouco agem, mas isso não impede que a platéia caia na risada. Os homens-coelhos são como os coelhos, nada fazem a não ser reproduzir-se. Sua passividade é semelhante à nossa, de espectadores. Num filme de transformações contínuas, onde o fato de ter uma atriz no centro parece facilitar a multiplicação dos papéis, a família de coelhos talvez seja a mais evidente notação do vazio do espetáculo e de seu mundo: se para chorar (como a garota diante da TV) é preciso apenas retomar velhas experiências, para rir basta a platéia ter vontade de rir. A impressão que se tem é que, ao contrário de "Cidade dos Sonhos", não se tem mais um jogo em que se confundem o mundo real e o dos desejos, onde o sonhado (ficção que vela e revela os desejos) pode ser um caminho de acesso à verdade. Aqui, um papel remete a outro, um tempo a outro e, finalmente, um filme a outro: é como se o mecanismo do espetáculo se voltasse contra si mesmo, dando-se conta de uma crise. Indiferente a isso, a família de coelhos continuará a produzir gargalhadas falsas sem nada fazer. Juntando e, sobretudo, desjuntando cuidadosamente essas peças, David Lynch produz uma experiência original e perturbadora a partir das ruínas do espetáculo do mundo. IMPÉRIO DOS SONHOS Diretor: David Lynch Produção: França, Polônia, EUA, 2006 Com: Laura Dern, Jeremy Irons Onde: estréia hoje no Espaço Unibanco, Frei Caneca Unibanco Arteplex, HSBC Belas Artes e Cine Tam Avaliação: ótimo Texto Anterior: Disputa de filme estrangeiro alija título do Brasil Próximo Texto: Crítica/"Encantada" Disney volta aos contos de fadas com humor Índice |
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