São Paulo, sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

O polvo e o dragão da rua Larga

Vendia de tudo, panelas, talheres, escarradeiras, penicos, ferros de engomar

MUITOS E MUITOS anos sem ir para aqueles lados. Cerimônia no Itamaraty, abertura oficial de um desses congressos internacionais que o Cândido Mendes promove, e lá fui eu abraçar o meu amigo. Ele está sempre fazendo alguma coisa importante pelo mundo afora, em Túnis, em Quito, na Indonésia, no Ceilão, em Lima, fica difícil ir atrás dele, mas no velho Itamaraty da rua Larga não me custa nada.
Como sempre, cheguei mais cedo para rever aquele trecho da cidade que não mais freqüento. Antes da construção da avenida Rio Branco pelo presidente Rodrigues Alves, e da Presidente Vargas pelo próprio, a rua Larga, mais tarde Marechal Floriano, era a mais imponente do Rio republicano, daí o apelido de Larga. Era o endereço do então Palácio Presidencial, transferido posteriormente para o Catete, antes de ir parar no Planalto.
No meu tempo -felizmente já tenho idade suficiente para falar de boca cheia "no meu tempo"- quando se dizia "rua Larga" ninguém pensava no velho Itamaraty. Pensava-se na sede da Light and Power, o Polvo Canadense que se instalara ao lado do Palácio Presidencial, para mostrar quem mandava mais. Imaginemos a General Motors colada na Casa Branca, na Pensylvania Avenue, Washington DC. Era mais ou menos isso.
Mas, além do polvo canadense, havia o dragão, "O Dragão, o Rei da Rua Larga" -tal como se anunciava nos jornais e nas rádios, era a grife mais popular da publicidade que começava entre nós.
Vendia de tudo, panelas, talheres, jarros, aquilo que antigamente se dizia "trem de cozinha", ferros de engomar, escarradeiras, penicos, montava-se a casa inteira com uma visita a preceito naquele endereço marcado por enorme dragão na fachada, de cuja formidável boca saíam terríveis labaredas.
A sede da Light continua até hoje, no sóbrio e sólido edifício que os canadenses ali deixaram, mas o polvo que sugava todas as energias da cidade literalmente se pulverizou, sua decantada malignidade foi revista pelo tempo, senhor da razão. Hoje é espaço cultural e museu.
O Dragão, esse se foi mesmo, esquartejado em centenas de shoppings que o substituíram, bem verdade que não completamente, não mais se vendem escarradeiras e penicos.
Quando o marechal Craveiro Lopes, presidente de Portugal, visitou o Brasil, criou um problema para Juscelino Kubitschek, que botou o coronel Affonso Heliodoro na busca mais feroz por um penico. Dona Berta, mulher do marechal, disse a JK que o marido só con- seguia dormir com um penico embaixo da cama.
Bem, coisas de outro tempo e de outros homens. Mesmo assim, andei de um lado para outro na velha rua Larga, onde num sobrado pintado de verde ficava o dentista que freqüentei ainda como seminarista, vestido com a batina que prometera honrar e que me honrava.
O dentista tinha uma secretária jovem, da minha idade, loura, morava em Niterói, estudava à noite e tinha pena de mim. Não por causa dos dentes, meu problema era comum, mas por causa da batina.
Uma tarde, quando saí da cadeira tétrica, ela desceu comigo no elevador e me convidou para tomar um caldo de cana com sanduíche de salame -havia na rua Larga umas 500 casas vendendo as duas especiarias que formavam o lanche compulsório dos comerciários da época.
Criamos um certo suspense, o jovem de batina ao lado de uma loura que devia ser menos bonita do que hoje recordo, mas o era su- ficiente para chamar a atenção, todos olhavam para ela, com uma admiração obscena. Ofereci-me para pagar, ela não aceitou, afinal, o convite fora dela.
Ao sairmos, numa loja de discos ao lado a vitrola tocava o sucesso do momento, "Always in My Heart", do filme homônimo, mas em versão cantada por Orlando Silva: "Sem- pre no meu coração perto ou longe estarás...".
Ela disse que amava aquela música de Ernesto Lecuona, vira o filme, não gostara muito, mas adorava a canção. Com vergonha de comprar o que a vitrola estava tocando, pedi que ela o fizesse, dei-lhe o dinheiro, ela me olhou espantada mas aceitou. Com o disco embrulhado, voltou a dizer que tinha muita pena de mim.
Rua Larga. Depois de tantos anos o polvo me alcançou e senti o dragão vomitando chamas que também me fizeram ter pena de mim.


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