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CARLOS HEITOR CONY
O polvo e o dragão da rua Larga
Vendia de tudo, panelas, talheres, escarradeiras, penicos, ferros de engomar
MUITOS E MUITOS anos sem ir
para aqueles lados. Cerimônia no Itamaraty, abertura oficial de um desses congressos
internacionais que o Cândido Mendes promove, e lá fui eu abraçar
o meu amigo. Ele está sempre fazendo alguma coisa importante pelo
mundo afora, em Túnis, em Quito,
na Indonésia, no Ceilão, em Lima,
fica difícil ir atrás dele, mas no velho
Itamaraty da rua Larga não me
custa nada.
Como sempre, cheguei mais cedo
para rever aquele trecho da cidade
que não mais freqüento. Antes da
construção da avenida Rio Branco
pelo presidente Rodrigues Alves, e
da Presidente Vargas pelo próprio, a
rua Larga, mais tarde Marechal Floriano, era a mais imponente do Rio
republicano, daí o apelido de Larga.
Era o endereço do então Palácio
Presidencial, transferido posteriormente para o Catete, antes de ir parar no Planalto.
No meu tempo -felizmente já tenho idade suficiente para falar de
boca cheia "no meu tempo"- quando se dizia "rua Larga" ninguém
pensava no velho Itamaraty. Pensava-se na sede da Light and Power, o
Polvo Canadense que se instalara ao
lado do Palácio Presidencial, para
mostrar quem mandava mais. Imaginemos a General Motors colada na
Casa Branca, na Pensylvania Avenue, Washington DC. Era mais ou
menos isso.
Mas, além do polvo canadense,
havia o dragão, "O Dragão, o Rei da
Rua Larga" -tal como se anunciava
nos jornais e nas rádios, era a grife
mais popular da publicidade que começava entre nós.
Vendia de tudo, panelas, talheres,
jarros, aquilo que antigamente se dizia "trem de cozinha", ferros de engomar, escarradeiras, penicos, montava-se a casa inteira com uma visita
a preceito naquele endereço marcado por enorme dragão na fachada,
de cuja formidável boca saíam terríveis labaredas.
A sede da Light continua até hoje,
no sóbrio e sólido edifício que os canadenses ali deixaram, mas o polvo
que sugava todas as energias da cidade literalmente se pulverizou, sua
decantada malignidade foi revista
pelo tempo, senhor da razão. Hoje é
espaço cultural e museu.
O Dragão, esse se foi mesmo,
esquartejado em centenas de shoppings que o substituíram, bem
verdade que não completamente,
não mais se vendem escarradeiras
e penicos.
Quando o marechal Craveiro
Lopes, presidente de Portugal,
visitou o Brasil, criou um problema
para Juscelino Kubitschek, que
botou o coronel Affonso Heliodoro
na busca mais feroz por um penico.
Dona Berta, mulher do marechal,
disse a JK que o marido só con-
seguia dormir com um penico
embaixo da cama.
Bem, coisas de outro tempo e de
outros homens. Mesmo assim, andei de um lado para outro na velha
rua Larga, onde num sobrado pintado de verde ficava o dentista que freqüentei ainda como seminarista,
vestido com a batina que prometera
honrar e que me honrava.
O dentista tinha uma secretária
jovem, da minha idade, loura, morava em Niterói, estudava à noite e tinha pena de mim. Não por causa dos
dentes, meu problema era comum,
mas por causa da batina.
Uma tarde, quando saí da cadeira
tétrica, ela desceu comigo no elevador e me convidou para tomar um
caldo de cana com sanduíche de salame -havia na rua Larga umas 500
casas vendendo as duas especiarias
que formavam o lanche compulsório dos comerciários da época.
Criamos um certo suspense, o
jovem de batina ao lado de uma
loura que devia ser menos bonita
do que hoje recordo, mas o era su-
ficiente para chamar a atenção,
todos olhavam para ela, com uma
admiração obscena. Ofereci-me para pagar, ela não aceitou, afinal,
o convite fora dela.
Ao sairmos, numa loja de discos
ao lado a vitrola tocava o sucesso
do momento, "Always in My Heart",
do filme homônimo, mas em versão
cantada por Orlando Silva: "Sem-
pre no meu coração perto ou longe
estarás...".
Ela disse que amava aquela música de Ernesto Lecuona, vira o filme,
não gostara muito, mas adorava a
canção. Com vergonha de comprar o
que a vitrola estava tocando, pedi
que ela o fizesse, dei-lhe o dinheiro,
ela me olhou espantada mas aceitou.
Com o disco embrulhado, voltou a
dizer que tinha muita pena de mim.
Rua Larga. Depois de tantos anos
o polvo me alcançou e senti o dragão
vomitando chamas que também me
fizeram ter pena de mim.
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