São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Bloom propõe Hamlet como um jogo de xadrez

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Harold Bloom é um "bardólatra" assumido. Logo depois de seu monumental "Shakespeare: A Invenção do Humano", minuciosa análise de um autor conceituado como aquele que criou as bases para a concepção moderna do homem, ele se penitencia por não ter se aprofundado como deveria justamente na sua maior obra e propõe este "Hamlet: Poema Ilimitado" como um poslúdio, regras em separado para um jogo intrincado.
"Hamlet" é a peça mais complexa. Goethe teria reescrito "Hamlet" em "Fausto"; Beckett, em "Fim de Jogo"; Pirandello em suas peças metalingüísticas.
A erudição que perpassa os 25 curtos e contundentes capítulos de Bloom não deve, no entanto, afastar o leitor menos embasado.
Ao contrário, idéias-chave são distribuídas generosamente, como princípios a serem experimentados para que cada um construa sua própria versão. Assim, Horácio é o representante do público no palco; o coveiro é o princípio de realidade; e Yorick, o bobo que criou Hamlet, cuja caveira surge na mão do príncipe exilado em um mundo sem humor, seria um espectro muito mais útil que o do seu pai.
Mais do que nas releituras dos colegas eruditos, portanto, Bloom apóia seus argumentos no próprio Shakespeare, sua obra e seu tempo. Imagina quem seria capaz de confrontar o sarcasmo de Hamlet no túmulo de Ofélia: Iago seria inútil, só Falstaff conseguiria. Por outro lado, é precioso saber que o papel do Ator-rei, convocado pelo príncipe para a armadilha teatral que desmascarará Cláudio, foi feito pelo próprio Shakespeare, que assim se oferecia de escada para que seu primeiro ator Burbage pudesse brilhar, em um generoso duelo de interpretações.
Isto posto, as constantes referências na peça ao ato de representar não são efeito retórico, mas um doloroso auto-exame de um gênio solitário, que só vislumbra um interlocutor na posteridade. Não há ação na peça que não sirva para a reflexão sobre a ação, todo ato é impostura, e "Hamlet", de ilimitadas interpretações, é como um quebra-cabeças impossível de ser montado.
Ou melhor, uma peça a ser montada por cada um que a lê. Por isso é oportuna a iniciativa da edição brasileira, não só de apoiar as numerosas citações que Bloom faz do texto na clássica tradução de Anna Amélia de Mendonça, como de oferecê-la na íntegra na seqüência do volume. Recomenda-se a quem ainda não leu a peça, fazê-lo antes, criar suas próprias teorias e depois confrontá-las às apresentadas por Harold Bloom. É apaixonante como um jogo de xadrez.


Hamlet: Poema Ilimitado
    
Autor: Harold Bloom

Tradução: José Roberto O'Shea

Editora: Objetiva

Quanto: R$ 48,90 (320 págs.)


Texto Anterior: Livros - "Shakespeare After All": Estudiosa dos EUA promove encontro com Shakespeare
Próximo Texto: 400 anos de Quixote: Cervantes quis ser político na América
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.