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LIVROS - HISTÓRIA
Obra
erra ao ver cinema de
ficção como realidade
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
"Passado Imperfeito" é um "livro de cinema" tipicamente americano. Por pelo menos três razões.
Primeiro: só nos Estados Unidos,
onde a confusão entre ficção e realidade tem muitas vezes consequências históricas (com personalidades públicas interpretando a si
mesmas em grandes produções
hollywoodianas; celebridades do
jornalismo televisivo no papel de si
mesmas se prestando a entrevistar
personagens como se fossem pessoas reais em filmes de ficção científica; um louco tentando matar o
presidente por causa de uma atriz,
ou protestos militantes sendo provocados por representações "incorretas" da realidade), alguém
poderia se dar ao trabalho de organizar todo um livro sobre os "erros" das adaptações cinematográficas (ficcionais) da história.
Só num país que é também o berço de um sentimento de auditoria
social, como o "politicamente
correto", poderia passar pela cabeça de um historiador de uma
universidade prestigiosa ter chegado a hora de dar um pito no cinema de ficção por suas interpretações deturpadas da história.
Tipicamente americano também, porque, onde deveria haver
pensamento, às vezes parecem ser
suficientes a compilação (a reunião de autores de peso, como Stephen Jay Gould, Simon Schama,
Peter Gay e Robert Darnton, cada
um comentando o viés interpretativo de um determinado filme) e
uma técnica de edição que, com
auxílio de diversos quadros informativos e ilustrações, dá a impressão de que o livro diz mais do que
na realidade está dizendo.
Na verdade, "Passado Imperfeito" não diz grande coisa. E pára de
pensar no instante em que o pensamento se faz mais necessário. O
próprio organizador, Mark Carnes, professor de história do Barnard College, parece ter consciência dos riscos que corre com seu
projeto "corretivo" ao incluir como introdução uma entrevista do
cineasta independente e escritor
John Sayles ("Lone Star", "Matewan") com o historiador Eric Foner, sem sombra de dúvida a melhor coisa do livro, ao lado do artigo de Stephen Jay Gould sobre "O
Parque dos Dinossauros" e os estereótipos atribuídos pelas convenções culturais aos cientistas.
Sayles é uma espécie de Clint
Eastwood de Nova Jersey, sem o
menor escrúpulo de dizer aos historiadores que "a história é um celeiro para ser pilhado". O cineasta
é um adulto e está falando do óbvio: de ficção, da construção de
narrativas dramáticas. "Se exatidão histórica fosse o que as pessoas
querem ver, os historiadores seriam vice-presidentes dos estúdios", arremata. O que Sayles deixa claro é o princípio um tanto tolo
da questão de denunciar as ficções
por traírem a realidade.
É quando o historiador retruca,
levantando um ponto crucial da
cultura ocidental contemporânea,
e que poderia ser melhor desenvolvido se o livro não se contentasse
com o tipo de análise comezinha
em que gasta suas trezentas e tantas páginas. Por que então a necessidade mercadológica de dizer que
uma obra de fiçcão é baseada em
fatos e personagens reais? Por que
não fazer simplesmente uma obra
de ficção?
A pergunta é das mais pertinentes, tanto mais por estar na base de
grande parte do que se faz hoje em
cinema e literatura. Sayles responde como pode: "Há uma certa força que emana da história. (...) As
platéias gostam do fato de que
aquilo aconteceu de verdade".
Essa demanda do público é hoje,
com toda a onda de biografias, romances e filmes históricos, um
ponto chave para a análise que deseja elucidar o funcionamento da
cultura de massa contemporânea.
Mas não parece ser esse o objetivo
do livro. A discussão pára por aí.
A terceira razão que faz de "Passado Imperfeito" um "livro de cinema" tipicamente americano é a
seleção dos filmes abordados. É estranho numa coletânea sobre cinema e história não haver um único
filme de Eisenstein, enquanto
"Reds", de Warren Beatty, representa a interpretação cinematográfica da Revolução Russa. É verdade que o organizador diz ter limitado sua análise a Hollywood
-e a predominância avassaladora
de filmes americanos (de "O Álamo" a "Patton", passando por "O
Intrépido General Custer", "A
História de Wyatt Earp", "Forte
Apache", "...E o Vento Levou"
etc. etc.), em detrimento de várias
obras-primas do cinema "histórico" europeu, confirma essa opção.
Mas então o que estariam fazendo
"Aguirre", de Herzog, e "Danton", de Wajda, nessa seleção
"hollywoodiana"?
Para completar, grande parte
dos "erros" apontados nos filmes
pelos ensaístas não são factuais,
mas interpretativos. Ou seja, os
comentários acabam recorrendo à
velha crítica ideológica. Todo discurso é interpretativo, é um ponto
de vista, por mais rigoroso que se
pretenda. Os filmes históricos por
vezes dizem muito mais sobre a
época em que foram feitos do que
sobre a época de que tratam suas
narrativas. Desse ponto de vista,
não existem erros. É óbvio, por
exemplo, que "O Nascimento de
uma Nação", de Griffith, é descaradamente racista. Assim como é
óbvio que "Apocalipse Now" não
está preocupado em fazer um retrato realista da Guerra do Vietnã,
ou não teria o significado artístico
que tem.
Na tentativa de apontar erros
num bê-á-bá da denúncia da deturpação histórica para leitores de
nível ginasiano, grande parte dos
comentários de "Passado Imperfeito" acaba incorrendo num erro
ainda maior. Só num país como os
Estados Unidos parece possível até
mesmo a historiadores e jornalistas seguir tratando a ficção como
se fosse realidade.
Livro: Passado Imperfeito - A História no
Cinema
Organização: Mark Carnes
Quanto: R$ 50 (320 págs.)
Lançamento: Record
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