São Paulo, quinta, 15 de janeiro de 1998.



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LIVROS - HISTÓRIA
Obra erra ao ver cinema de ficção como realidade

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

"Passado Imperfeito" é um "livro de cinema" tipicamente americano. Por pelo menos três razões. Primeiro: só nos Estados Unidos, onde a confusão entre ficção e realidade tem muitas vezes consequências históricas (com personalidades públicas interpretando a si mesmas em grandes produções hollywoodianas; celebridades do jornalismo televisivo no papel de si mesmas se prestando a entrevistar personagens como se fossem pessoas reais em filmes de ficção científica; um louco tentando matar o presidente por causa de uma atriz, ou protestos militantes sendo provocados por representações "incorretas" da realidade), alguém poderia se dar ao trabalho de organizar todo um livro sobre os "erros" das adaptações cinematográficas (ficcionais) da história.
Só num país que é também o berço de um sentimento de auditoria social, como o "politicamente correto", poderia passar pela cabeça de um historiador de uma universidade prestigiosa ter chegado a hora de dar um pito no cinema de ficção por suas interpretações deturpadas da história.
Tipicamente americano também, porque, onde deveria haver pensamento, às vezes parecem ser suficientes a compilação (a reunião de autores de peso, como Stephen Jay Gould, Simon Schama, Peter Gay e Robert Darnton, cada um comentando o viés interpretativo de um determinado filme) e uma técnica de edição que, com auxílio de diversos quadros informativos e ilustrações, dá a impressão de que o livro diz mais do que na realidade está dizendo.
Na verdade, "Passado Imperfeito" não diz grande coisa. E pára de pensar no instante em que o pensamento se faz mais necessário. O próprio organizador, Mark Carnes, professor de história do Barnard College, parece ter consciência dos riscos que corre com seu projeto "corretivo" ao incluir como introdução uma entrevista do cineasta independente e escritor John Sayles ("Lone Star", "Matewan") com o historiador Eric Foner, sem sombra de dúvida a melhor coisa do livro, ao lado do artigo de Stephen Jay Gould sobre "O Parque dos Dinossauros" e os estereótipos atribuídos pelas convenções culturais aos cientistas.
Sayles é uma espécie de Clint Eastwood de Nova Jersey, sem o menor escrúpulo de dizer aos historiadores que "a história é um celeiro para ser pilhado". O cineasta é um adulto e está falando do óbvio: de ficção, da construção de narrativas dramáticas. "Se exatidão histórica fosse o que as pessoas querem ver, os historiadores seriam vice-presidentes dos estúdios", arremata. O que Sayles deixa claro é o princípio um tanto tolo da questão de denunciar as ficções por traírem a realidade.
É quando o historiador retruca, levantando um ponto crucial da cultura ocidental contemporânea, e que poderia ser melhor desenvolvido se o livro não se contentasse com o tipo de análise comezinha em que gasta suas trezentas e tantas páginas. Por que então a necessidade mercadológica de dizer que uma obra de fiçcão é baseada em fatos e personagens reais? Por que não fazer simplesmente uma obra de ficção?
A pergunta é das mais pertinentes, tanto mais por estar na base de grande parte do que se faz hoje em cinema e literatura. Sayles responde como pode: "Há uma certa força que emana da história. (...) As platéias gostam do fato de que aquilo aconteceu de verdade".
Essa demanda do público é hoje, com toda a onda de biografias, romances e filmes históricos, um ponto chave para a análise que deseja elucidar o funcionamento da cultura de massa contemporânea. Mas não parece ser esse o objetivo do livro. A discussão pára por aí.
A terceira razão que faz de "Passado Imperfeito" um "livro de cinema" tipicamente americano é a seleção dos filmes abordados. É estranho numa coletânea sobre cinema e história não haver um único filme de Eisenstein, enquanto "Reds", de Warren Beatty, representa a interpretação cinematográfica da Revolução Russa. É verdade que o organizador diz ter limitado sua análise a Hollywood -e a predominância avassaladora de filmes americanos (de "O Álamo" a "Patton", passando por "O Intrépido General Custer", "A História de Wyatt Earp", "Forte Apache", "...E o Vento Levou" etc. etc.), em detrimento de várias obras-primas do cinema "histórico" europeu, confirma essa opção. Mas então o que estariam fazendo "Aguirre", de Herzog, e "Danton", de Wajda, nessa seleção "hollywoodiana"?
Para completar, grande parte dos "erros" apontados nos filmes pelos ensaístas não são factuais, mas interpretativos. Ou seja, os comentários acabam recorrendo à velha crítica ideológica. Todo discurso é interpretativo, é um ponto de vista, por mais rigoroso que se pretenda. Os filmes históricos por vezes dizem muito mais sobre a época em que foram feitos do que sobre a época de que tratam suas narrativas. Desse ponto de vista, não existem erros. É óbvio, por exemplo, que "O Nascimento de uma Nação", de Griffith, é descaradamente racista. Assim como é óbvio que "Apocalipse Now" não está preocupado em fazer um retrato realista da Guerra do Vietnã, ou não teria o significado artístico que tem.
Na tentativa de apontar erros num bê-á-bá da denúncia da deturpação histórica para leitores de nível ginasiano, grande parte dos comentários de "Passado Imperfeito" acaba incorrendo num erro ainda maior. Só num país como os Estados Unidos parece possível até mesmo a historiadores e jornalistas seguir tratando a ficção como se fosse realidade.

Livro: Passado Imperfeito - A História no Cinema
Organização: Mark Carnes
Quanto: R$ 50 (320 págs.)
Lançamento: Record



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