São Paulo, Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1999
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O conde parte para as cruzadas

CARLOS HEITOR CONY

do Conselho Editorial

Publiquei há pouco, neste mesmo espaço, o início da comovente história da condessa, até então fiel ao conde, seu marido, cobiçada pelo barão, mas secretamente apaixonada por Rodolfo, um primo que ela não via desde a mocidade. Sob o título: "Aqui, condessa, em hora tal?", relatei as aventuras preliminares desse complicado caso de amor, desejo, ciúme e patifaria generalizada, que como sabemos, é muito comum em qualquer corte, em qualquer época ou lugar.
Continuando a leitura do grosso romance que não tem indicação de título e autor, ficamos sabendo que o conde solicita os bons serviços de Frei Corigan para dar conforto espiritual à sua mulher, necessitada que está de pios conselhos. Acontece que o frade também cobiça a condessa. Formado na escola neoliberal dos resultados, Frei Corigan faz um acordo com a condessa: ela pode cair nos braços do primo desde que, depois ou se possível antes, caia em seus próprios braços.
Faltam algumas páginas no volume que tenho, de maneira que fico sem saber de muita coisa. Mas a narrativa prossegue na cena em que a condessa e o primo estão nos sórdidos lençóis do adultério quando o conde, vindo da caçada aos javalis, a surpreende no momento em que, com a voz embargada de prazer, ela diz para Rodolfo estas enigmáticas palavras: "Sim, tudo!".
Ia o conde embeber o aço de sua espada nos bofes do primo de sua mulher -quando surge o barão, autor da frase: "Aqui, condessa, em hora tal?". Pois a condessa e o conde, se fora outra a ocasião, bem que podiam revidar, exclamando, "Aqui, barão, em momento tal?" Pois a presença do barão nas cercanias da alcova condal também era suspeita.
Suspeita e eficaz. Apesar das evidências, o barão conseguiu que o conde perdoasse a condessa. E como, para tamanha falta um só perdão fosse pouco, providenciou-se o perdão de Deus, por meio de Frei Corigan. Estamos na página 987 e há outras tantas pela frente.
Perdoada, a condessa propõe-se a viver uma vida de macerações e piedades. Começa sua nova vida distribuindo pão aos pobres e aos passarinhos. Mas o barão, que a salvara da ira e da espada do conde, condicionou o favor a uma pecaminosa ida da condessa a seus aposentos. Levou o bolo, pois Frei Corigan proibiu-a terminantemente de qualquer outra ou igual prevaricação. Nunca e nem mais! Ora, o barão soube pela aia, a fiel Adelaide, que o frade empatara sua foda e por meio de cilícios e açoites tentava domar a carne lasciva da condessa, que queria porque queria "gemer como uma cabra" nos braços de Rodolfo.
Bolou o barão um jeito de se vingar de ambos, condessa e frade. Sabendo pela fiel Adelaide que ela iria à cela de Frei Corigan fazer-se ouvir em confissão, o barão contratou um escudeiro para providenciar, ao lado da cela frugal do frade, um leito adamascado e uma ceia com vinhos, codornas e arenques defumados -acepipes que, àquela época, eram tidos como afrodisíacos e prenunciavam bandalheira grossa.
Pois estava a condessa aos pés de seu confessor, dando conta de suas pias macerações e caridades, quando surge, trazido pelo barão, o conde. -"Canalhas!" A função do conde em todo o romance é rosnar a palavra "canalhas". Todos cobiçam os encantos de sua esposa, e o jeito é rosnar mesmo, de dentes cerrados. -"Canalhas! Traiu-me o amigo, e agora me trai o ministro de Deus!"
Tão judiciosa frase encontrou perplexidade em ambos. Condessa e frade protestaram, de rastros, que nada faziam de mais, mas o barão, que acompanhara o conde até a cela do frade, "rasgou abruptamente o reposteiro de veludo" e o que surgiu? O leito adamascado, a ceia, as codornas, os vinhos, os arenques defumados.
O frade, por um momento, atribuiu aquela mise-en-scène de bacanal a um ardil do demônio. A condessa atribuiu a bacanal ao próprio frade e entrou a gritar que era inocente, que fora ludibriada em sua fé.
Da vez anterior, o barão impedira que o escândalo viesse às ruas. Mas desta feita não havia quem escorasse a honra do poder: a "fedentina do populacho" -diz o romancista que pinta os eventos aristocráticos- "subiu ao castelo". Indignada, a população preparou duas fogueiras. Numa, foi alçado Frei Corigan, o frade corrupto. Amarrado ao poste e já com as chamas a beber-lhe a sotaina profanada pela imundice de seu pecado, Frei Corigan protestava inocência: -"Sou inocente! Sou Frei Corigan! Coriganus Frater!" Falando em latim, o frade pensava que todo mundo iria entendê-lo.
Na outra fogueira ergueram a condessa. O romancista esclarece que a sua palidez era tanta que "dir-se-ia que já era cadáver". Vendo-a naquele transe, com as chamas purificadoras ameaçando queimar aquelas carnes que ele tanto cobiçava, o barão correu ao castelo, a fim de rogar clemência. Mas o escudeiro que o atendeu nada pôde fazer: -"Senhor barão, lamento informar-lhe, o conde partiu para as cruzadas!".


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