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O conde parte para as cruzadas
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Publiquei há pouco, neste
mesmo espaço, o início da comovente história da condessa,
até então fiel ao conde, seu marido, cobiçada pelo barão, mas
secretamente apaixonada por
Rodolfo, um primo que ela não
via desde a mocidade. Sob o título: "Aqui, condessa, em hora
tal?", relatei as aventuras preliminares desse complicado caso
de amor, desejo, ciúme e patifaria generalizada, que como
sabemos, é muito comum em
qualquer corte, em qualquer
época ou lugar.
Continuando a leitura do
grosso romance que não tem
indicação de título e autor, ficamos sabendo que o conde solicita os bons serviços de Frei
Corigan para dar conforto espiritual à sua mulher, necessitada que está de pios conselhos.
Acontece que o frade também
cobiça a condessa. Formado na
escola neoliberal dos resultados, Frei Corigan faz um acordo com a condessa: ela pode
cair nos braços do primo desde
que, depois ou se possível antes,
caia em seus próprios braços.
Faltam algumas páginas no
volume que tenho, de maneira
que fico sem saber de muita
coisa. Mas a narrativa prossegue na cena em que a condessa
e o primo estão nos sórdidos
lençóis do adultério quando o
conde, vindo da caçada aos javalis, a surpreende no momento em que, com a voz embargada de prazer, ela diz para Rodolfo estas enigmáticas palavras: "Sim, tudo!".
Ia o conde embeber o aço de
sua espada nos bofes do primo
de sua mulher -quando surge
o barão, autor da frase: "Aqui,
condessa, em hora tal?". Pois a
condessa e o conde, se fora outra a ocasião, bem que podiam
revidar, exclamando, "Aqui,
barão, em momento tal?" Pois
a presença do barão nas cercanias da alcova condal também
era suspeita.
Suspeita e eficaz. Apesar das
evidências, o barão conseguiu
que o conde perdoasse a condessa. E como, para tamanha
falta um só perdão fosse pouco,
providenciou-se o perdão de
Deus, por meio de Frei Corigan. Estamos na página 987 e
há outras tantas pela frente.
Perdoada, a condessa propõe-se a viver uma vida de macerações e piedades. Começa
sua nova vida distribuindo pão
aos pobres e aos passarinhos.
Mas o barão, que a salvara da
ira e da espada do conde, condicionou o favor a uma pecaminosa ida da condessa a seus
aposentos. Levou o bolo, pois
Frei Corigan proibiu-a terminantemente de qualquer outra
ou igual prevaricação. Nunca e
nem mais! Ora, o barão soube
pela aia, a fiel Adelaide, que o
frade empatara sua foda e por
meio de cilícios e açoites tentava domar a carne lasciva da
condessa, que queria porque
queria "gemer como uma cabra" nos braços de Rodolfo.
Bolou o barão um jeito de se
vingar de ambos, condessa e
frade. Sabendo pela fiel Adelaide que ela iria à cela de Frei
Corigan fazer-se ouvir em confissão, o barão contratou um
escudeiro para providenciar,
ao lado da cela frugal do frade,
um leito adamascado e uma
ceia com vinhos, codornas e
arenques defumados -acepipes que, àquela época, eram tidos como afrodisíacos e prenunciavam bandalheira grossa.
Pois estava a condessa aos pés
de seu confessor, dando conta
de suas pias macerações e caridades, quando surge, trazido
pelo barão, o conde. -"Canalhas!" A função do conde em
todo o romance é rosnar a palavra "canalhas". Todos cobiçam os encantos de sua esposa,
e o jeito é rosnar mesmo, de
dentes cerrados. -"Canalhas!
Traiu-me o amigo, e agora me
trai o ministro de Deus!"
Tão judiciosa frase encontrou
perplexidade em ambos. Condessa e frade protestaram, de
rastros, que nada faziam de
mais, mas o barão, que acompanhara o conde até a cela do
frade, "rasgou abruptamente o
reposteiro de veludo" e o que
surgiu? O leito adamascado, a
ceia, as codornas, os vinhos, os
arenques defumados.
O frade, por um momento,
atribuiu aquela mise-en-scène
de bacanal a um ardil do demônio. A condessa atribuiu a
bacanal ao próprio frade e entrou a gritar que era inocente,
que fora ludibriada em sua fé.
Da vez anterior, o barão impedira que o escândalo viesse
às ruas. Mas desta feita não havia quem escorasse a honra do
poder: a "fedentina do populacho" -diz o romancista que
pinta os eventos aristocráticos- "subiu ao castelo". Indignada, a população preparou
duas fogueiras. Numa, foi alçado Frei Corigan, o frade corrupto. Amarrado ao poste e já
com as chamas a beber-lhe a
sotaina profanada pela imundice de seu pecado, Frei Corigan protestava inocência:
-"Sou inocente! Sou Frei Corigan! Coriganus Frater!" Falando em latim, o frade pensava que todo mundo iria entendê-lo.
Na outra fogueira ergueram
a condessa. O romancista esclarece que a sua palidez era
tanta que "dir-se-ia que já era
cadáver". Vendo-a naquele
transe, com as chamas purificadoras ameaçando queimar
aquelas carnes que ele tanto
cobiçava, o barão correu ao
castelo, a fim de rogar clemência. Mas o escudeiro que o
atendeu nada pôde fazer:
-"Senhor barão, lamento informar-lhe, o conde partiu para as cruzadas!".
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