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CINEMA REESTRÉIA
"Cabíria" coloca estilo como saída
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
É difícil imaginar na história do
cinema um filme mais circular do
que "Noites de Cabíria" (1957),
que reestréia agora em uma cópia
integral e restaurada.
Mais do que expor o conceito filosófico do eterno retorno, o que
esse clássico de Fellini faz é ilustrar
com insistência uma certa noção
popular de que, na vida, não se sai
do lugar. Ou, melhor, de que saímos de lugar nenhum para chegar
a nenhum lugar.
A prostituta Cabíria começa como vítima de um logro e, depois de
tantas noites e de apelar inutilmente até para as graças de Nossa
Senhora para mudar de vida, acaba
vítima de outro. Além de prostituta nas ruas de Roma, ela parece ter
nascido para cair no conto (do vigário) do amor.
O filme marreta, a cada nova cena, esse pessimismo popular na cabeça do espectador, privando-o de
qualquer ilusão justo quando ele
começava, seguindo os passos da
protagonista ingênua em sua via-crúcis, a acreditar na possibilidade
de alguma redenção.
E o mais surpreendente é que,
apesar dessa insistência na descrença, ainda seja possível sair do
cinema com um sorriso crédulo (a
exemplo do que a própria Cabíria
traz estampado no rosto ao final
do filme), acreditando não só que a
vida faz sentido, mas que vale a pena viver, nem que seja para não
sair do lugar. Porque "Noites de
Cabíria" pode ser cético, mas não é
cínico.
O principal foco de contraponto
ao pessimismo é sem dúvida a
atuação de Giulietta Masina (prêmio de melhor atriz no Festival de
Cannes de 57), mas não menos a
afirmação, por parte do cineasta,
de um estilo autoral marcante, ainda que discreto se comparado à
sua obra posterior.
Jean-Luc Godard chegou a dizer
que, ao contrário de Rossellini, de
quem Fellini tinha sido assistente,
o diretor de "Noites de Cabíria"
não teria inovado, mas apenas seguido os passos do mestre.
Mas já nesse filme (o sétimo de
sua carreira) a invenção de Fellini e
sua diferença em relação ao neo-realismo ficam claras, com sua tomada de partido por uma "estilização" radical, a criação de um estilo
próprio como único contraponto
possível ao pessimismo.
Em "Noites de Cabíria", é a própria protagonista que encarna essa
idéia: não deve haver expectativa, a
graça não vem de deus nenhum,
mas da vontade e possibilidade de
cada um de inventar um estilo próprio para si, um estilo de vida.
Aqui, Cabíria se torna alter ego do
diretor. Porque para os dois esse
estilo é a extravagância.
Sob essa ótica, o cineasta dá ao
conceito de "mulher da vida" um
sentido literal. As prostitutas aqui
são mais uma idealização de mulher do que figuras num documentário. A vida nos extremos as torna
maravilhosas, loucas e interessantes até as últimas consequências.
Não dá mais para falar de realismo, ou de simples humanismo,
porque aqui esses tipos extrapolam a função de representações de
uma realidade social para não deixar dúvidas de que são peças da invenção de um mundo autoral.
A extravagância nada mais é do
que o estilo dos extremos -ou o
extremo com estilo, a transformação do grotesco em estilo. E não é
por acaso que "felliniano" tenha se
tornado sinônimo de extravagante
e grotesco.
Em vez da vitimização e da autopiedade, o que Cabíria (e o espectador com ela) compreende ao final, cercada de jovens que cantam
e namoram, depois de ter sido lograda de todas as formas, hipnotizada, ridicularizada, humilhada e
roubada, é que o estilo é a única
possibilidade de invenção de um
modo de vida a partir do que está
arruinado. O estilo é a única coisa
que lhe resta.
Filme: Noites de Cabíria
Produção: Itália, 1957
Direção: Federico Fellini
Com: Giulietta Masina, François Perier e
Franca Marzi
Quando: estréia hoje, no Vitrine
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