São Paulo, Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1999
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CINEMA REESTRÉIA
"Cabíria" coloca estilo como saída

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

É difícil imaginar na história do cinema um filme mais circular do que "Noites de Cabíria" (1957), que reestréia agora em uma cópia integral e restaurada.
Mais do que expor o conceito filosófico do eterno retorno, o que esse clássico de Fellini faz é ilustrar com insistência uma certa noção popular de que, na vida, não se sai do lugar. Ou, melhor, de que saímos de lugar nenhum para chegar a nenhum lugar.
A prostituta Cabíria começa como vítima de um logro e, depois de tantas noites e de apelar inutilmente até para as graças de Nossa Senhora para mudar de vida, acaba vítima de outro. Além de prostituta nas ruas de Roma, ela parece ter nascido para cair no conto (do vigário) do amor.
O filme marreta, a cada nova cena, esse pessimismo popular na cabeça do espectador, privando-o de qualquer ilusão justo quando ele começava, seguindo os passos da protagonista ingênua em sua via-crúcis, a acreditar na possibilidade de alguma redenção.
E o mais surpreendente é que, apesar dessa insistência na descrença, ainda seja possível sair do cinema com um sorriso crédulo (a exemplo do que a própria Cabíria traz estampado no rosto ao final do filme), acreditando não só que a vida faz sentido, mas que vale a pena viver, nem que seja para não sair do lugar. Porque "Noites de Cabíria" pode ser cético, mas não é cínico.
O principal foco de contraponto ao pessimismo é sem dúvida a atuação de Giulietta Masina (prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes de 57), mas não menos a afirmação, por parte do cineasta, de um estilo autoral marcante, ainda que discreto se comparado à sua obra posterior.
Jean-Luc Godard chegou a dizer que, ao contrário de Rossellini, de quem Fellini tinha sido assistente, o diretor de "Noites de Cabíria" não teria inovado, mas apenas seguido os passos do mestre.
Mas já nesse filme (o sétimo de sua carreira) a invenção de Fellini e sua diferença em relação ao neo-realismo ficam claras, com sua tomada de partido por uma "estilização" radical, a criação de um estilo próprio como único contraponto possível ao pessimismo.
Em "Noites de Cabíria", é a própria protagonista que encarna essa idéia: não deve haver expectativa, a graça não vem de deus nenhum, mas da vontade e possibilidade de cada um de inventar um estilo próprio para si, um estilo de vida. Aqui, Cabíria se torna alter ego do diretor. Porque para os dois esse estilo é a extravagância.
Sob essa ótica, o cineasta dá ao conceito de "mulher da vida" um sentido literal. As prostitutas aqui são mais uma idealização de mulher do que figuras num documentário. A vida nos extremos as torna maravilhosas, loucas e interessantes até as últimas consequências.
Não dá mais para falar de realismo, ou de simples humanismo, porque aqui esses tipos extrapolam a função de representações de uma realidade social para não deixar dúvidas de que são peças da invenção de um mundo autoral.
A extravagância nada mais é do que o estilo dos extremos -ou o extremo com estilo, a transformação do grotesco em estilo. E não é por acaso que "felliniano" tenha se tornado sinônimo de extravagante e grotesco.
Em vez da vitimização e da autopiedade, o que Cabíria (e o espectador com ela) compreende ao final, cercada de jovens que cantam e namoram, depois de ter sido lograda de todas as formas, hipnotizada, ridicularizada, humilhada e roubada, é que o estilo é a única possibilidade de invenção de um modo de vida a partir do que está arruinado. O estilo é a única coisa que lhe resta.


Filme: Noites de Cabíria
Produção: Itália, 1957
Direção: Federico Fellini
Com: Giulietta Masina, François Perier e Franca Marzi
Quando: estréia hoje, no Vitrine




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