São Paulo, sexta-feira, 15 de fevereiro de 2002

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"O Quarto do Filho", novo filme do diretor de "Caro Diário" e "Aprile", estréia no Brasil depois de vencer Cannes

Nanni Moretti descreve a dor entre quatros paredes

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Os fãs de Nanni Moretti certamente irão se surpreender com "O Quarto do Filho", o mais novo filme do diretor italiano. No Brasil, o cineasta -que iniciou a carreira em 1973 e, desde então, já assinou 15 produções- se tornou conhecido por "Caro Diário" e "Aprile".
Eram, ambos, autobiográficos. Ou melhor: tinham o próprio Moretti como personagem principal. Um tipo irônico e afetuoso que, nos dois casos, olhava para si mesmo e extraía do espelho relatos graciosamente prosaicos. Se o que contava correspondia de fato à realidade vivida, pouco importa.
Ainda que só estivesse dando um testemunho ilusório, esculpido com mentiras verossímeis, o diretor alcançava sempre a cumplicidade da platéia -também porque centrava a narrativa no humor. Ao se expor de modo muitas vezes jocoso, revelava-se demasiadamente humano e, assim, oferecia para o público uma espécie de conforto. Era como se dissesse: a fragilidade nos faz todos irmãos.
Em "O Quarto do Filho", que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2001, não há comédia nem motes biográficos. Trata-se, cem por cento, de uma ficção. Mais: de um melodrama.
Corajosamente, o cineasta ousou rejeitar os pólos em que transitava de maneira tão desenvolta. Resolveu trilhar o caminho oposto na esperança de alcançar o mesmo destino. Funcionou. Sai-se desse triste longa-metragem com sensação idêntica à provocada pelos filmes cômicos do diretor: a fragilidade nos irmana.
O enredo se desenrola em uma pequena cidade litorânea da Itália, onde mora a família do psicanalista Giovanni (interpretado por Moretti). Ele e a mulher, Paola, criam um simpático casal de filhos adolescentes, Irene e o caçula Andrea. São, os quatro, visivelmente felizes.
Compõem um conjunto harmônico, apesar de imperfeito. Não se comportam como se habitassem um comercial de margarina (ou um blockbuster de Hollywood), em que a felicidade resulta da ausência de falhas. Giovanni, Paola, Irene e Andrea mostram-se generosos o suficiente para tolerar as fraquezas comezinhas uns dos outros.
Pelo divã do psicanalista, passam meia dúzia de pacientes que amargam neuroses relacionadas à compulsão, à falta de controle. Uma mulher não consegue evitar a mania de limpeza. Um rapaz sente-se refém de obsessões sexuais. Um homem pensa o tempo inteiro em suicídio.
Giovanni, invariavelmente, os recebe com placidez e procura tranquilizá-los concedendo-lhes o antídoto da humildade. Aconselha-os a curvarem-se diante da existência. Ensina-lhes que, se não podem mesmo comandar tudo, o melhor é apenas "aceitar, esperar, observar".
Num domingo de sol, porém, Andrea vai mergulhar e não volta. Sofre um acidente fatal. A flecha cega da tragédia vara impiedosamente a família.
Na primeira parte do longa-metragem, quando o diretor descreve o cotidiano equilibrado do clã de Giovanni, nada permite antever o feroz tormento que devastará gente tão serena. Daí o profundo incômodo, a incrível angústia que a morte repentina do filho caçula causará tanto nos personagens fictícios quanto na platéia.
É um rodamoinho real demais -porque traiçoeiro, injusto, inexplicável, tirânico, como costuma ocorrer sempre que a tragédia decide se apresentar.
O furor do vendaval parte o filme em dois. E a cisão obriga o público a experimentar, num curtíssimo espaço de tempo, sensações antagônicas -de início, a tranquilidade contemplativa; depois, o horror que não deixa escolha.
Especialmente aflitivo é notar que, logo após o desastre, nem os pais nem a irmã de Andrea conseguem dizer com todas as letras que ele morreu. Valem-se de eufemismos verbais para simbolizar a perda do rapaz. O recado soa cristalino: as palavras não dão conta de expressar a morte. Morrer é muito concreto. Só a imagem do morto convence os vivos do fim.
O diretor, então, não poupa o espectador de ver Andrea no ataúde, de vê-lo jovem e inerte, pálido e rígido. Tampouco o priva de assistir à mecânica movimentação dos operários encarregados de tampar e lacrar o esquife.
Igualmente aflitivo é acompanhar a dor surda e a perplexidade de Giovanni perante o fato consumado. O filho partiu, e o pai -que tanto pregara a aceitação do descontrole- não suporta reconhecer-se impotente. Quer agir, mas o ato de nada adiantará.
Na cozinha de casa, observa a louça envelhecida, um pouquinho trincada, que sempre esteve ali. Aquilo agora o incomoda. Ele sabe que, depois da tragédia, as imperfeições da vida não lhe parecerão mais tão contornáveis.

O Quarto do Filho
La Stanza del Figlio
    
Direção: Nanni Moretti
Produção: Itália, 2001
Com: Nanni Moretti, Laura Morante, Jasmine Trinca
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Cinearte, Espaço Unibanco, Lumière e circuito



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