São Paulo, sexta-feira, 15 de fevereiro de 2002

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CINEMA / ESTRÉIAS

"A SEREIA DO MISSISSIPPI"

Ponto forte da carreira do diretor, longa de 1969 entra em cartaz hoje em São Paulo

Deneuve enche de dúvidas filme de Truffaut

Divulgação
A atriz Catherine Deneuve e o ator Jean-Paul Belmondo em cena do longa "A Sereia do Mississippi", do cineasta francês François Truffaut, em exibição a partir de hoje no Top Cine


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Sereias são misteriosas. Em outros tempos, essa "Sereia do Mississippi" soava um tanto falsa. Catherine Deneuve, com sua classe diáfana, desembarcava na distante ilha da Reunião (na África), com magníficos vestidos de Yves Saint-Laurent, um pássaro numa gaiola e o nome de Julie.
Em princípio, era a noiva encomendada por um plantador de tabaco local, Louis (Jean-Paul Belmondo). Não era bem a mulher que ele esperava e cuja fotografia tinha em mãos, mas a troca era vantajosa e a paixão foi imediata.
Para o espectador restavam muitas dúvidas. Como aceitar que Julie se revelasse uma vigarista, criada em orfanatos e instituições correcionais? Não colava com a imagem de Deneuve. Essa foi talvez a maior razão do fracasso deste filme: a inverossimilhança.
De lá para cá passaram-se mais ou menos 30 anos, e a sereia mudou inteiramente. Transfigurou-se em heroína hitchcockiana, como a Ingrid Bergman de "Sob o Signo de Capricórnio", ou a Tippi Hedren de "Marnie, Confissões de uma Ladra". Não perguntamos mais se é verossímil ("realista"). Sabemos que a sereia é uma estrela e ponto final.
Com isso, tornou-se mais fácil chegar ao que o filme quer dizer, e que pode se resumir a uma questão: o que significa "eu te amo"?
Pode ser eu te amo mesmo, mas também eu te odeio, eu te desprezo. O amante vive em torno dessa incerteza e de outra: quem é de fato essa pessoa a quem eu amo?
É à sombra dessas dúvidas que girará a vida de Louis. Logo, a bela mulher começa a soar falso: desde a explicação para a troca de fotos (teria usado a foto de outra pessoa por timidez ou algo assim) até o hábito de tomar café (havia escrito que adorava chá), nada cola.
Esses detalhes provocam a imaginação do espectador. Mais do que isso, é a presença de Catherine Deneuve que nos enche de dúvidas. Estamos em pleno território hitchcockiano. Não há palavra ou gesto seu que não seja carregado de de segredos, como em "Sob o Signo de Capricórnio", que talvez esconda uma patologia, como em "Marnie", ou mesmo que sugira uma mulher com vida dupla, como em "Um Corpo que Cai".
Do outro lado, existe um homem que tenta compreender essa mulher que lhe escapa. As semelhanças com Hitchcock não param por aí, mas a partir daí são as diferenças que contam.
É possível dizer que Hitchcock era um diretor de cinema apaixonado por suas heroínas e, eventualmente, por suas atrizes. Truffaut, um apaixonado pelas mulheres, o que dá a sua "Sereia" uma inflexão bem outra.
Existe suspense, sem dúvida, mas é o destino e a intensidade da paixão de Louis que estará em questão. Se em Hitchcock a razão dita o jogo, em Truffaut a paixão é um território em que a lucidez nada tem a ver com a razão. Para Louis, ao contrário, a paixão significa entrega completa, ou seja abdica da lucidez, talvez da vida.
Daí estarmos aqui diante de uma bela mistura entre a tradição lógica anglo-saxônica e o romantismo francês, tal como exacerbada pelos surrealistas: o único amor é o amor desmedido.
Filme feito para Deneuve, apaixonado por Deneuve, "A Sereia do Mississippi" hoje se deixa ver como um ponto forte da carreira de Truffaut. Mais do que nunca, ele conjuga aqui o amor pelo cinema ao amor por uma mulher.

A Sereia do Mississippi
La Sirène du Mississippi
    
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1969
Com: Catherine Deneuve, Jean-Paul Belmondo
Quando: a partir de hoje no Top Cine



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