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CINEMA / ESTRÉIAS
"A SEREIA DO MISSISSIPPI"
Ponto forte da carreira do diretor, longa de 1969 entra em cartaz hoje em São Paulo
Deneuve enche de dúvidas filme de Truffaut
Divulgação
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A atriz Catherine Deneuve e o ator Jean-Paul Belmondo em cena do longa "A Sereia do Mississippi", do cineasta francês François Truffaut, em exibição a partir de hoje no Top Cine |
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Sereias são misteriosas. Em
outros tempos, essa "Sereia
do Mississippi" soava um tanto
falsa. Catherine Deneuve, com
sua classe diáfana, desembarcava
na distante ilha da Reunião (na
África), com magníficos vestidos
de Yves Saint-Laurent, um pássaro numa gaiola e o nome de Julie.
Em princípio, era a noiva encomendada por um plantador de tabaco local, Louis (Jean-Paul Belmondo). Não era bem a mulher
que ele esperava e cuja fotografia
tinha em mãos, mas a troca era
vantajosa e a paixão foi imediata.
Para o espectador restavam
muitas dúvidas. Como aceitar que
Julie se revelasse uma vigarista,
criada em orfanatos e instituições
correcionais? Não colava com a
imagem de Deneuve. Essa foi talvez a maior razão do fracasso deste filme: a inverossimilhança.
De lá para cá passaram-se mais
ou menos 30 anos, e a sereia mudou inteiramente. Transfigurou-se em heroína hitchcockiana, como a Ingrid Bergman de "Sob o
Signo de Capricórnio", ou a Tippi
Hedren de "Marnie, Confissões
de uma Ladra". Não perguntamos mais se é verossímil ("realista"). Sabemos que a sereia é uma
estrela e ponto final.
Com isso, tornou-se mais fácil
chegar ao que o filme quer dizer, e
que pode se resumir a uma questão: o que significa "eu te amo"?
Pode ser eu te amo mesmo, mas
também eu te odeio, eu te desprezo. O amante vive em torno dessa
incerteza e de outra: quem é de fato essa pessoa a quem eu amo?
É à sombra dessas dúvidas que
girará a vida de Louis. Logo, a bela
mulher começa a soar falso: desde
a explicação para a troca de fotos
(teria usado a foto de outra pessoa
por timidez ou algo assim) até o
hábito de tomar café (havia escrito que adorava chá), nada cola.
Esses detalhes provocam a imaginação do espectador. Mais do
que isso, é a presença de Catherine Deneuve que nos enche de dúvidas. Estamos em pleno território hitchcockiano. Não há palavra
ou gesto seu que não seja carregado de de segredos, como em "Sob
o Signo de Capricórnio", que talvez esconda uma patologia, como
em "Marnie", ou mesmo que sugira uma mulher com vida dupla,
como em "Um Corpo que Cai".
Do outro lado, existe um homem que tenta compreender essa
mulher que lhe escapa. As semelhanças com Hitchcock não param por aí, mas a partir daí são as
diferenças que contam.
É possível dizer que Hitchcock
era um diretor de cinema apaixonado por suas heroínas e, eventualmente, por suas atrizes. Truffaut, um apaixonado pelas mulheres, o que dá a sua "Sereia"
uma inflexão bem outra.
Existe suspense, sem dúvida,
mas é o destino e a intensidade da
paixão de Louis que estará em
questão. Se em Hitchcock a razão
dita o jogo, em Truffaut a paixão é
um território em que a lucidez nada tem a ver com a razão. Para
Louis, ao contrário, a paixão significa entrega completa, ou seja
abdica da lucidez, talvez da vida.
Daí estarmos aqui diante de
uma bela mistura entre a tradição
lógica anglo-saxônica e o romantismo francês, tal como exacerbada pelos surrealistas: o único
amor é o amor desmedido.
Filme feito para Deneuve, apaixonado por Deneuve, "A Sereia
do Mississippi" hoje se deixa ver
como um ponto forte da carreira
de Truffaut. Mais do que nunca,
ele conjuga aqui o amor pelo cinema ao amor por uma mulher.
A Sereia do Mississippi
La Sirène du Mississippi
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1969
Com: Catherine Deneuve, Jean-Paul
Belmondo
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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