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CONTARDO CALLIGARIS
Maioridade penal e hipocrisia
Nossa alma "generosa" dorme melhor com a idéia de que a prisão é reeducativa
UM ADOLESCENTE de 16 anos
fazia parte da quadrilha que
arrastou o corpo de João Hélio, 6 anos, pelas ruas do Rio.
A cada vez que um menor comete
um crime repugnante (homicídio,
estupro, latrocínio), volta o debate
sobre a maioridade penal.
Em geral, o essencial é dito e repetido. E não acontece nada. Aos poucos, o horror do crime é esquecido.
Não é por preguiça, é por hipocrisia.
Preferimos deixar para lá, até a próxima, covardemente, porque custamos a contrariar alguns lugares-comuns de nossa maneira de pensar.
1) A prisão é uma instituição hipócrita desde sua invenção moderna.
Ela protege o cidadão, evitando que
os lobos circulem pelas ruas, e pune
o criminoso, constrangendo seu
corpo. Mas nossa alma "generosa"
dorme melhor com a idéia de que a
prisão é um empreendimento reeducativo, no qual a sociedade emenda suas ovelhas desgarradas.
A versão nacional dessa hipocrisia
diz que a reeducação falha porque
nosso sistema carcerário é brutal e
inadequado. Essa caracterização é
exata, mas qualquer pesquisa, pelo
mundo afora, reconhece que mesmo o melhor sistema carcerário só
consegue "recuperar" (eventualmente) os criminosos responsáveis
por crimes não-hediondos. Quanto
aos outros, a prisão serve para punir
o réu e proteger a sociedade.
Essa constatação frustra as ambições do poder moderno, que (como
mostrou Michel Foucault em "Vigiar e Punir") aposta na capacidade
de educar e reeducar os espíritos. A
idéia de apenas segregar os criminosos nos repugna porque diz que somos incapazes de convertê-los.
Detalhe: Foucault denunciou
(com razão) a instituição carcerária,
mas, na hora de propor alternativas
(conferência de Montreal, em 1975),
sua contribuição era balbuciante.
2) Em geral, para evitarmos admitir que a prisão serve para punir e
proteger a sociedade (e não para
educar), muda-se o foco da atenção:
"Esqueça a prisão, pense nas causas". Preferimos, em suma, a má
consciência pela desigualdade social
à má consciência por punir e segregar os criminosos. Ora, a miséria pode ser a causa de crimes leves contra
o patrimônio, mas o psicopata, que
estupra e mata para roubar, não é
fruto da dureza de sua vida.
Por exemplo, no último número
da "Revista de Psiquiatria Clínica"
(vol. 33, 2006), uma pesquisa de
Schmitt, Pinto, Gomes, Quevedo e
Stein mostra que "adolescentes infratores graves (autores de homicídio, estupro e latrocínio) possuem
personalidade psicopática e risco
aumentado de reincidência criminal, mas não apresentam maior prevalência de história de abuso na infância do que outros adolescentes
infratores".
3) A má consciência por punir e
segregar é especialmente ativa
quando se trata de menores criminosos, pois, com crianças e adolescentes, temos uma ambição ortopédica desmedida: queremos acreditar
que podemos educá-los e reeducá-los, sempre -e rapidamente, viu?
No fim de 2003, outra quadrilha,
liderada por um adolescente, massacrou dois jovens, Liana e Felipe,
que passavam o fim de semana numa barraca, no Embu-Guaçu. Depois desse crime, na mesma "Revista de Psiquiatria Clínica" (vol. 31,
2004), Jorge Wohney Ferreira
Amaro publicou uma crítica fundamentada e radical do Estatuto da
Criança e do Adolescente. Resumindo suas conclusões:
Ou o menor é consciente de seu
ato, e, portanto, imputável como um
adulto;
Ou seu desenvolvimento é incompleto, e, nesse caso, nada garante
que ele se complete num máximo de
três anos;
Ou, então, o jovem sofre de um
Transtorno da Personalidade Anti-Social (psicopatia), cuja cura (quando acontece) exige raramente menos de uma década de esforços.
Em suma, a maioridade penal poderia ser reduzida para 16 ou 14
anos, mas não é isso que realmente
importa. A hipocrisia está no artigo
121 do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual, para um
menor, "em nenhuma hipótese, o
período máximo de internação excederá a três anos".
Ora, a decência, o bom senso e a
coerência pedem que uma comissão, um juiz especializado ou mesmo um júri popular decidam, antes
de mais nada, se o menor acusado
deve ser julgado como adulto ou
não. Caso ele seja reconhecido como
menor ou como portador de um
transtorno da personalidade, o jovem só deveria ser devolvido à sociedade uma vez "completado" seu desenvolvimento ou sua cura -que isso leve três anos, ou dez, ou 50.
ccalligari@uol.com.br
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