São Paulo, quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

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NINA HORTA

Duas faces da mesma moeda

Os laboratórios de açúcar em bolhas e picolés de lula têm de temer a morte

TODO MUNDO soube, todo mundo escreveu sobre a polêmica no madridfusion. O chef Santi Santamaría convidou os ouvintes a refletirem sobre a cozinha-show, de laboratório, a cozinha marqueteira. Já muito se ouviu sobre esse assunto, mas o que intrigou muita gente foi a aparente frase chula jogada na direção dos seus colegas cozinheiros. "...donde la única verdad que cuenta es el producto de la tierra, que sale de los fogones al plato, de ahi a la boca del cliente y luego se defeca, porque sin una buena defecación no hay una gran cucina."
Espanto, palmas catalãs. Seria uma farpa lançada contra Ferran Adrià? Inveja? Despeito? Raiva contra os laboratórios, espumas, bolhas, consistências inusitadas? Nesse "defecar", ainda por cima, um eufemismo para um verbo mais robusto...
Foi aí que consultei Robert Hughes no clássico "Barcelona". O que diziam os castelhanos sobre os catalães? "Obtusos, ora pedantes, ora ressentidos, em geral as duas coisas ao mesmo tempo, presos demais às coisas materiais... além de demasiado orgulhosos de seu pedaço de terra mediterrâneo... uma sociedade de mercenários ladrando entre eles numa língua espúria..."
Então, ao criticarmos o discurso de Santamaría, somos o outro, o povo de Castela, esnobe, aristocrata, ensimesmado.
E o que acha o catalão de si próprio? Além de todas as virtudes do mundo, "leais, patrióticos, engenhosos, inovadores e ao mesmo tempo respeitadores de suas raízes...". O catalão representaria a continuidade, o equilíbrio, o siso e uma pitada de ironia.
Busquem na internet um quadro de Joan Miró, a "Quinta de Montroig", ou a "Finca de Montroig". É a imagem detalhada do lugar onde viveu a infância. Uma visão comovedora e intensa da terra natal, traduzida em árvores, casa, burrico, cachorro, cavalo, ferramentas.
A continuidade. O trabalho comandado pelas estações, o solo fértil. O equilíbrio da repetição -a mesma família executando o mesmo trabalho através de gerações, criando coisas com as mãos, fugindo da abstração que paralisa. O bom senso, a ordem, a pouca vontade de correr atrás de novidades.
Acontece que tanto equilíbrio é repressivo. É preciso dar vazão a ele.
Daí, serem os catalães os reis da "rauxa", que quer dizer "explosão incontrolável", "acesso", demonstrados nas suas festas escandalosas, bebedeiras, queima de igrejas, transgressões de normas sociais aceitas. E o juízo e a rauxa, dois lados da mesma moeda, são inseparáveis do gosto pelo humor escatológico, obsceno. Daí o ditado popular.
"Manjar be e cagar forte/no tingues por de la mort": "comer bem e cagar forte e não tenhas medo da morte".
Um tipo de humor desconhecido do resto da Europa, o cocô festivo.
E lá no quadro de Miró está sentadinho num canto, de calças arreadas, o "caganer", que aparece em todos os presépios, iconografia cristã tipicamente catalã. Só lá temos esse homenzinho de cócoras, fazendo um cocô marrom que o une à terra.
Nada pode tirá-lo daquela tarefa arquetípica de dar de volta ao solo o alimento que recebeu. O excremento fertiliza, é quase santo, amigo do camponês (e do chef).
Santi Santamaría nada mais fez do que explodir e foi entendido por todo aquele que aspira a um trono e uma boa obra. Os laboratórios de açúcar em bolhas e picolés de lula têm que temer a morte, pois conseguirão, no máximo, produzir ruminações estomacais.
Santi Santamaría e Ferran Adrià, catalães que não renunciam nem ao espírito nem à experiência e estão sempre tentando construir uma "integração fecunda entre os dois extremos opostos em luta", defeitos e virtudes misturados, ambos pragmáticos, tênue filosofia, um na cozinha outro no laboratório, duas faces da mesma moeda.


ninahorta@uol.com.br

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