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NINA HORTA
Duas faces da mesma moeda
Os laboratórios de açúcar em bolhas e picolés de lula têm de temer a morte
TODO MUNDO soube, todo
mundo escreveu sobre a polêmica no madridfusion. O chef
Santi Santamaría convidou os ouvintes a refletirem sobre a cozinha-show, de laboratório, a cozinha marqueteira. Já muito se ouviu sobre esse assunto, mas o que intrigou muita
gente foi a aparente frase chula jogada na direção dos seus colegas cozinheiros. "...donde la única verdad que cuenta es el producto de la tierra, que sale de los fogones al plato, de
ahi a la boca del cliente y luego se defeca, porque sin una buena defecación no hay una gran cucina."
Espanto, palmas catalãs. Seria
uma farpa lançada contra Ferran
Adrià? Inveja? Despeito? Raiva contra os laboratórios, espumas, bolhas,
consistências inusitadas? Nesse
"defecar", ainda por cima, um eufemismo para um verbo mais robusto...
Foi aí que consultei Robert Hughes no clássico "Barcelona". O que
diziam os castelhanos sobre os catalães? "Obtusos, ora pedantes, ora
ressentidos, em geral as duas coisas
ao mesmo tempo, presos demais às
coisas materiais... além de demasiado orgulhosos de seu pedaço de terra mediterrâneo... uma sociedade de
mercenários ladrando entre eles numa língua espúria..."
Então, ao criticarmos o discurso
de Santamaría, somos o outro, o povo de Castela, esnobe, aristocrata,
ensimesmado.
E o que acha o catalão de si próprio? Além de todas as virtudes do
mundo, "leais, patrióticos, engenhosos, inovadores e ao mesmo tempo
respeitadores de suas raízes...". O catalão representaria a continuidade,
o equilíbrio, o siso e uma pitada de
ironia.
Busquem na internet um quadro
de Joan Miró, a "Quinta de Montroig", ou a "Finca de Montroig". É a
imagem detalhada do lugar onde viveu a infância. Uma visão comovedora e intensa da terra natal, traduzida em árvores, casa, burrico, cachorro, cavalo, ferramentas.
A continuidade. O trabalho comandado pelas estações, o solo fértil. O equilíbrio da repetição -a
mesma família executando o mesmo trabalho através de gerações,
criando coisas com as mãos, fugindo
da abstração que paralisa. O bom
senso, a ordem, a pouca vontade de
correr atrás de novidades.
Acontece que tanto equilíbrio é
repressivo. É preciso dar vazão a ele.
Daí, serem os catalães os reis da
"rauxa", que quer dizer "explosão
incontrolável", "acesso", demonstrados nas suas festas escandalosas,
bebedeiras, queima de igrejas,
transgressões de normas sociais
aceitas. E o juízo e a rauxa, dois lados
da mesma moeda, são inseparáveis
do gosto pelo humor escatológico,
obsceno. Daí o ditado popular.
"Manjar be e cagar forte/no tingues
por de la mort": "comer bem e cagar
forte e não tenhas medo da morte".
Um tipo de humor desconhecido do
resto da Europa, o cocô festivo.
E lá no quadro de Miró está sentadinho num canto, de calças arreadas, o "caganer", que aparece em todos os presépios, iconografia cristã
tipicamente catalã. Só lá temos esse
homenzinho de cócoras, fazendo
um cocô marrom que o une à terra.
Nada pode tirá-lo daquela tarefa arquetípica de dar de volta ao solo o
alimento que recebeu. O excremento fertiliza, é quase santo, amigo do
camponês (e do chef).
Santi Santamaría nada mais fez do
que explodir e foi entendido por todo aquele que aspira a um trono e
uma boa obra. Os laboratórios de
açúcar em bolhas e picolés de lula
têm que temer a morte, pois conseguirão, no máximo, produzir ruminações estomacais.
Santi Santamaría e Ferran Adrià,
catalães que não renunciam nem ao
espírito nem à experiência e estão
sempre tentando construir uma "integração fecunda entre os dois extremos opostos em luta", defeitos e
virtudes misturados, ambos pragmáticos, tênue filosofia, um na cozinha outro no laboratório, duas faces
da mesma moeda.
ninahorta@uol.com.br
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