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CARLOS HEITOR CONY
Nada contra Ipanema e tudo a favor de tudo
Nem lembrava mais. Coisa de anos ou meses atrás,
publiquei em algum lugar uma
crônica sobre a Ipanema dos anos
60, em que dizia, certamente entre outras besteiras, que Ipanema
era um retrato na parede do
quarto dos seus sobreviventes.
Início desta semana, deste março
calorento, cheio de mosquitos, recebi furioso e-mail de leitor e leitora que descobriram, nem sei como, não apenas o meu endereço
eletrônico (cheguei a esse tipo de
decadência) mas notáveis falhas
de caráter, coerência e gosto em
meus textos e comportamento.
Deus Todo-Poderoso e Senhor
nosso é testemunha de que nada
tenho contra Ipanema. Na realidade, não tenho nada contra nada; se dependesse de mim, o mundo e a humanidade seriam todos
a favor de tudo, até de mim mesmo. Mas vamos lá.
Não me lembro de ter exercido
uma militância anti-Ipanema
nem em pensamentos, nem em
palavras, nem em obras. Não sou
fanático por ela, isso é verdade,
mas não sou fanático pela Bulgária e nem por isso tenho qualquer
coisa contra ela.
Para falar a verdade, não tenho
nada contra nada, o que não significa que seja a favor de tudo.
Não sou a favor da matança das
baleias, mas também não vou me
suicidar porque uma delas perdeu o rumo e encalhou numa
praia de Santa Catarina.
Já morei em Ipanema; por sinal,
foi um dos períodos mais felizes
de minha vida. Foi tão bom esse
tempo que deixei de escrever, sendo esse o único benefício que prestei à humanidade e a mim próprio. Fiquei gostosamente na minha.
Mas o mesmo poderia ter acontecido se, em vez de morar em
Ipanema, eu tivesse morado em
Marechal Hermes ou Honório
Gurgel. Por falar nisso: desde
criança ouço dizer que havia no
Rio um subúrbio chamado Honório Gurgel. O tempo passou, fiquei
sabendo de coisas inúteis, como o
teorema de Pitágoras, a guerra do
Peloponeso, a dieta de Worms,
mas nunca soube quem foi Honório Gurgel. Sei que é distante, mas
não deve ser muito diferente, pois
tudo na vida tende a ser a mesma
coisa.
Ipanema era um bairro, uma
praia, um cheiro, um modo de caminhar pela vida, como o tango e
a doença de são Guido. Uma jaula à beira-mar plantada, onde
habitava uma fauna que eu evitava porque me atrapalhava o
exercício de ser feliz -no único
período em que exerci esse raro
ofício.
Certa vez, um dos meus amigos
daquela época, que recolhi bêbado num dos botequins em moda e
levei a seu domicílio, perguntou-me com asco: ""Por que você nunca está nos lugares certos?".
Eu entendi o que ele queria dizer. Lugar certo, para ele, era justamente de onde vinha -onde se
reuniam as mesmas pessoas, onde
se contavam uns aos outros as
mesmas histórias (as sardinhas
do Báltico do José Sanz, o gato
suicida do João Gilberto, os presos
no banheiro do Antônio's, o dia
em que Hugo Bidê teve um sonho
erótico com a Leila Diniz etc.),
onde se citavam as mesmas frases
(""São Paulo é o túmulo do samba", ""a pior solidão é a companhia de um paulista" etc.), onde
se sabia em quantos filmes o Wilson Grey trabalhara e onde se discutia à exaustão se o chope do Zepelin era melhor do que o do Castelinho.
Esses temas locais, que a turma
considerava universais, não me
emocionavam o suficiente, daí
que nada tinha a fazer nos lugares certos, embora gostasse de
quase todos os personagens que
frequentavam esses olimpos fiscalizados pela Sunab da época, que
todos os meses os multava por falta de higiene.
Num distante Carnaval do passado, me convidaram para sair
na Banda de Ipanema, que pela
primeira vez iria percorrer as
ruas do bairro, uma idéia do
Ferdy Carneiro, que vira uma
banda em Ubá, terra natal dele e
do Ary Barroso. Recusei-me a sair
na banda, mas fui espiá-la, como
Pedro foi espiar seu Mestre ir de
Anás a Caifás, mas à distância,
sem se comprometer.
Deu-se que vi a moça emburrada porque o namorado a trocara
pela banda: em vez de ficar com
ela, preferira sair com os amigos,
levando uma enorme e obscena
tuba nas costas. Conversei com a
moça e tantas fiz, ou fizemos, que
acabei ganhando um filho dela.
Foi assim que Ipanema entrou na
minha vida, mas eu nunca entrei
na de Ipanema.
Sobrevivi a tudo isso, fui morar
no Leblon, depois na Lagoa, Ipanema nem paisagem é. É apenas
uma paisagem. Volta e meia passo por lá, mas sempre estou indo
para outro lugar. Outro dia, parei
num sinal da Garcia Dávila e havia um louco na rua gritando:
""Olha a crise! Olha a crise!". Como no caso da banda, recusei-me
a olhar a crise que o cara anunciava. Crise por crise, cada um
tem a sua.
Bem verdade que, enquanto tive duas setters cor de ouro e mel,
ia à praia do Diabo. Para usar
uma expressão de Machado de
Assis, diria que a praia do Diabo
fica ""ao pé" de Ipanema. Era o
único trecho do litoral urbano
aonde podia levá-las. E em cujas
imediações parece que fica a
maior concentração de gatos por
metro quadrado -depois de Roma, naturalmente.
E, por falar em Roma, taí um
lugar que eu tenho tudo a favor.
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