São Paulo, sexta-feira, 15 de março de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Nada contra Ipanema e tudo a favor de tudo

Nem lembrava mais. Coisa de anos ou meses atrás, publiquei em algum lugar uma crônica sobre a Ipanema dos anos 60, em que dizia, certamente entre outras besteiras, que Ipanema era um retrato na parede do quarto dos seus sobreviventes. Início desta semana, deste março calorento, cheio de mosquitos, recebi furioso e-mail de leitor e leitora que descobriram, nem sei como, não apenas o meu endereço eletrônico (cheguei a esse tipo de decadência) mas notáveis falhas de caráter, coerência e gosto em meus textos e comportamento.
Deus Todo-Poderoso e Senhor nosso é testemunha de que nada tenho contra Ipanema. Na realidade, não tenho nada contra nada; se dependesse de mim, o mundo e a humanidade seriam todos a favor de tudo, até de mim mesmo. Mas vamos lá.
Não me lembro de ter exercido uma militância anti-Ipanema nem em pensamentos, nem em palavras, nem em obras. Não sou fanático por ela, isso é verdade, mas não sou fanático pela Bulgária e nem por isso tenho qualquer coisa contra ela.
Para falar a verdade, não tenho nada contra nada, o que não significa que seja a favor de tudo. Não sou a favor da matança das baleias, mas também não vou me suicidar porque uma delas perdeu o rumo e encalhou numa praia de Santa Catarina.
Já morei em Ipanema; por sinal, foi um dos períodos mais felizes de minha vida. Foi tão bom esse tempo que deixei de escrever, sendo esse o único benefício que prestei à humanidade e a mim próprio. Fiquei gostosamente na minha.
Mas o mesmo poderia ter acontecido se, em vez de morar em Ipanema, eu tivesse morado em Marechal Hermes ou Honório Gurgel. Por falar nisso: desde criança ouço dizer que havia no Rio um subúrbio chamado Honório Gurgel. O tempo passou, fiquei sabendo de coisas inúteis, como o teorema de Pitágoras, a guerra do Peloponeso, a dieta de Worms, mas nunca soube quem foi Honório Gurgel. Sei que é distante, mas não deve ser muito diferente, pois tudo na vida tende a ser a mesma coisa.
Ipanema era um bairro, uma praia, um cheiro, um modo de caminhar pela vida, como o tango e a doença de são Guido. Uma jaula à beira-mar plantada, onde habitava uma fauna que eu evitava porque me atrapalhava o exercício de ser feliz -no único período em que exerci esse raro ofício.
Certa vez, um dos meus amigos daquela época, que recolhi bêbado num dos botequins em moda e levei a seu domicílio, perguntou-me com asco: ""Por que você nunca está nos lugares certos?".
Eu entendi o que ele queria dizer. Lugar certo, para ele, era justamente de onde vinha -onde se reuniam as mesmas pessoas, onde se contavam uns aos outros as mesmas histórias (as sardinhas do Báltico do José Sanz, o gato suicida do João Gilberto, os presos no banheiro do Antônio's, o dia em que Hugo Bidê teve um sonho erótico com a Leila Diniz etc.), onde se citavam as mesmas frases (""São Paulo é o túmulo do samba", ""a pior solidão é a companhia de um paulista" etc.), onde se sabia em quantos filmes o Wilson Grey trabalhara e onde se discutia à exaustão se o chope do Zepelin era melhor do que o do Castelinho.
Esses temas locais, que a turma considerava universais, não me emocionavam o suficiente, daí que nada tinha a fazer nos lugares certos, embora gostasse de quase todos os personagens que frequentavam esses olimpos fiscalizados pela Sunab da época, que todos os meses os multava por falta de higiene.
Num distante Carnaval do passado, me convidaram para sair na Banda de Ipanema, que pela primeira vez iria percorrer as ruas do bairro, uma idéia do Ferdy Carneiro, que vira uma banda em Ubá, terra natal dele e do Ary Barroso. Recusei-me a sair na banda, mas fui espiá-la, como Pedro foi espiar seu Mestre ir de Anás a Caifás, mas à distância, sem se comprometer.
Deu-se que vi a moça emburrada porque o namorado a trocara pela banda: em vez de ficar com ela, preferira sair com os amigos, levando uma enorme e obscena tuba nas costas. Conversei com a moça e tantas fiz, ou fizemos, que acabei ganhando um filho dela. Foi assim que Ipanema entrou na minha vida, mas eu nunca entrei na de Ipanema.
Sobrevivi a tudo isso, fui morar no Leblon, depois na Lagoa, Ipanema nem paisagem é. É apenas uma paisagem. Volta e meia passo por lá, mas sempre estou indo para outro lugar. Outro dia, parei num sinal da Garcia Dávila e havia um louco na rua gritando: ""Olha a crise! Olha a crise!". Como no caso da banda, recusei-me a olhar a crise que o cara anunciava. Crise por crise, cada um tem a sua.
Bem verdade que, enquanto tive duas setters cor de ouro e mel, ia à praia do Diabo. Para usar uma expressão de Machado de Assis, diria que a praia do Diabo fica ""ao pé" de Ipanema. Era o único trecho do litoral urbano aonde podia levá-las. E em cujas imediações parece que fica a maior concentração de gatos por metro quadrado -depois de Roma, naturalmente.
E, por falar em Roma, taí um lugar que eu tenho tudo a favor.



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