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RODAPÉ
Paisagens negativas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
De todas as formas de arte
verbal, a poesia é a que mais
necessita de mediação crítica; ao
mesmo tempo, é o gênero em que
a teoria parece ser menos eficaz
em sua tarefa de nos aproximar
dos enigmas do significado.
Uma mesma palavra, repetida
em diferentes romances de diferentes autores, costuma ter conotações muito próximas.
O poema, em contrapartida, é
um arquipélago em que cada signo tem uma unicidade de sentido,
em que cada palavra representa a
fração insularizada de um mundo
particular e incomunicável -daí
o belíssimo título que René Char
deu a um de seus livros: "La Parole en Archipel" (A Palavra em Arquipélago).
Mais do que o romance, o conto
ou o ensaio, portanto, a poesia
precisa de alguém que a abra como quem parte uma fruta ao
meio e destrincha seus gomos.
E, no entanto, há sempre na
poesia uma espécie de superávit
de sentido em relação à fala corriqueira ou à prosa de ficção, um
mais-além que nenhuma teoria
consegue transmitir, pois a palavra teórica está ainda no âmbito
da linguagem-utensílio, que visa
os objetos através dos signos, ao
passo que a palavra poética tornou-se ela mesma objeto entre os
objetos do mundo.
A esse superávit de sentido corresponde, portanto, um déficit
teórico, de tal modo que a melhor
maneira de falar sobre poesia talvez seja abandonar qualquer premissa conceitual e supor, como
disse Waly Salomão, que "cada
poema "per se" constitui uma poética". Um feliz exemplo desse dispositivo literário em que o poema
é sempre um comentário do poema pode ser encontrado em "Carbono", de Tarso de Melo. Há nesse jovem autor muito da visualidade e do rigor de João Cabral ou
das elipses características da poesia de Régis Bonvicino.
Mas o diálogo com nossa tradição (presente na seção "Caderneta de Apropriações") diz pouco
sobre a poética de "Carbono",
uma poética deflagrada pelo primeiro verso do livro ("um dia
igual a todos"), em que Tarso de
Melo procura uma singularidade
de imagens que resistam ao papel
carbono com que a linguagem ordinária reproduz vivências ordinárias ("as datas consumidas/ como aspirinas").
A partir do poema que dá título
ao volume, Tarso de Melo se lança
sobre uma série de paisagens, que
podem ser paisagens urbanas,
paisagens cotidianas ou paisagens
interiores, mas que têm em comum o fato de escaparem por entre os dedos do poeta, de resistirem à representação.
"A paisagem anula a fala/ sela as
esferas/ abrupta engole o alcance/
da tarde e seus olhos", escreve ele
em uma das partes do poema
"Deserto". E essas paisagens negativas reaparecerão em diversos
pontos de "Carbono": no poema
"Cansaços, Ruas", surge uma
"paisagem deixada à página", em
que se acende "o rastro que une
-de ruína/ a ruína- o que fingimos perder"; em "Os Trabalhos",
vemos "a paisagem (o que/ sobra
dela) através dos ponteiros".
Em todos os poemas de "Carbono", estamos diante de uma "trêmula arquitetura", de "ângulos,
luz e segmentos da cor", de resíduos de realidade. Mas essa perda
do lastro da linguagem, a experiência (tão pós-moderna) da desaparição da referencialidade serve aqui como plataforma poética:
"Sombra deixada, reabro/ no caderno/ alguma palavra não gravada// traço instável da geometria/ a
ser escrita".
Em "Carbono", portanto, a linguagem elíptica e fragmentária
que começou a se esboçar em "A
Lapso", primeiro livro do autor,
se recompõe para além do vácuo
que a linguagem enuncia ("falta/
às coisas/ ausentar-se, e ao redor/
vazio"). E essa construção de uma
paisagem pessoal pela palavra
poética se consuma em "Deserto"
-uma sequência de 20 poemas
que remetem uns aos outros, desenhando uma topografia na qual
cada signo ou imagem adquire
um significado autárquico no interior da "geometria entre abismos" de Tarso de Melo.
Carbono
Autor: Tarso de Melo
Editora: Nankin/Alpharrabio
Quanto: R$ 15 (88 págs.)
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