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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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RODAPÉ

Paisagens negativas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

De todas as formas de arte verbal, a poesia é a que mais necessita de mediação crítica; ao mesmo tempo, é o gênero em que a teoria parece ser menos eficaz em sua tarefa de nos aproximar dos enigmas do significado.
Uma mesma palavra, repetida em diferentes romances de diferentes autores, costuma ter conotações muito próximas.
O poema, em contrapartida, é um arquipélago em que cada signo tem uma unicidade de sentido, em que cada palavra representa a fração insularizada de um mundo particular e incomunicável -daí o belíssimo título que René Char deu a um de seus livros: "La Parole en Archipel" (A Palavra em Arquipélago).
Mais do que o romance, o conto ou o ensaio, portanto, a poesia precisa de alguém que a abra como quem parte uma fruta ao meio e destrincha seus gomos.
E, no entanto, há sempre na poesia uma espécie de superávit de sentido em relação à fala corriqueira ou à prosa de ficção, um mais-além que nenhuma teoria consegue transmitir, pois a palavra teórica está ainda no âmbito da linguagem-utensílio, que visa os objetos através dos signos, ao passo que a palavra poética tornou-se ela mesma objeto entre os objetos do mundo.
A esse superávit de sentido corresponde, portanto, um déficit teórico, de tal modo que a melhor maneira de falar sobre poesia talvez seja abandonar qualquer premissa conceitual e supor, como disse Waly Salomão, que "cada poema "per se" constitui uma poética". Um feliz exemplo desse dispositivo literário em que o poema é sempre um comentário do poema pode ser encontrado em "Carbono", de Tarso de Melo. Há nesse jovem autor muito da visualidade e do rigor de João Cabral ou das elipses características da poesia de Régis Bonvicino.
Mas o diálogo com nossa tradição (presente na seção "Caderneta de Apropriações") diz pouco sobre a poética de "Carbono", uma poética deflagrada pelo primeiro verso do livro ("um dia igual a todos"), em que Tarso de Melo procura uma singularidade de imagens que resistam ao papel carbono com que a linguagem ordinária reproduz vivências ordinárias ("as datas consumidas/ como aspirinas").
A partir do poema que dá título ao volume, Tarso de Melo se lança sobre uma série de paisagens, que podem ser paisagens urbanas, paisagens cotidianas ou paisagens interiores, mas que têm em comum o fato de escaparem por entre os dedos do poeta, de resistirem à representação.
"A paisagem anula a fala/ sela as esferas/ abrupta engole o alcance/ da tarde e seus olhos", escreve ele em uma das partes do poema "Deserto". E essas paisagens negativas reaparecerão em diversos pontos de "Carbono": no poema "Cansaços, Ruas", surge uma "paisagem deixada à página", em que se acende "o rastro que une -de ruína/ a ruína- o que fingimos perder"; em "Os Trabalhos", vemos "a paisagem (o que/ sobra dela) através dos ponteiros".
Em todos os poemas de "Carbono", estamos diante de uma "trêmula arquitetura", de "ângulos, luz e segmentos da cor", de resíduos de realidade. Mas essa perda do lastro da linguagem, a experiência (tão pós-moderna) da desaparição da referencialidade serve aqui como plataforma poética: "Sombra deixada, reabro/ no caderno/ alguma palavra não gravada// traço instável da geometria/ a ser escrita".
Em "Carbono", portanto, a linguagem elíptica e fragmentária que começou a se esboçar em "A Lapso", primeiro livro do autor, se recompõe para além do vácuo que a linguagem enuncia ("falta/ às coisas/ ausentar-se, e ao redor/ vazio"). E essa construção de uma paisagem pessoal pela palavra poética se consuma em "Deserto" -uma sequência de 20 poemas que remetem uns aos outros, desenhando uma topografia na qual cada signo ou imagem adquire um significado autárquico no interior da "geometria entre abismos" de Tarso de Melo.


Carbono
   
Autor: Tarso de Melo Editora: Nankin/Alpharrabio Quanto: R$ 15 (88 págs.)



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